A Ordem dos Advogados (OA) entende que a junção aos autos, por um mandatário, de e-mails trocados com o advogado da outra parte, numa ação de processo comum a correr termos num juízo central cível, não tem, só por esse facto, de ser ilegal por violação do regime de confidencialidade.
Num parecer recente, o Conselho Regional de Coimbra (CRC) da Ordem pronunciou-se sobre a correspondência entre advogados, o sigilo profissional e a confidencialidade, face às regras do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) e do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
Desde logo, o CRC entende que as menções genéricas de confidencialidade apostas no template ou modelo usado por um advogado, no local abaixo da assinatura e não repetidas ou assinaladas em qualquer outra parte da mensagem, não são suficientes para se considerar que a mensagem está sujeita ao regime da confidencialidade.
É, pois, exigido, para que o regime de confidencialidade previsto no EOA possa produzir efeitos, que os factos transmitidos na comunicação sejam factos sigilosos.
A atribuição de caráter de confidencialidade à correspondência trocada entre advogados ao abrigo deste regime impede a utilização da correspondência como meio de prova.
Em consequência, menções genéricas de confidencialidade apostas no template do e-mail não bastam para aplicar regime da confidencialidade e impedir a junção dos e-mails, pelo que essa junção não é ilegal.
O caso
Em julho passado o juiz de um Juízo Central Cível pediu parecer à OA sobre a eventual ilegalidade da junção à petição inicial, pela advogada dos autores, de duas comunicações de e-mail trocados com o advogado da ré.
O juiz entendeu que se trataria de informação de divulgação proibida, face à menção, no corpo das referidas comunicações, de que a mensagem pode conter informação restrita ou confidencial (...) e se dirige exclusivamente à entidade destinada, pelo que, a sua cópia e a divulgação do seu conteúdo são estritamente proibidas.
Decisão da Ordem
Perante a comunicação trocada entre mandatários, a OA analisou os dois mails em causa, dos quais constava a seguinte menção:
NOTA DE CONFIDENCIALIDADE: Esta mensagem pode conter informação restrita ou confidencial, nomeadamente para efeitos do disposto no artigo 113.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, e dirige-se exclusivamente à entidade destinada, pelo que, a sua cópia e a divulgação do seu conteúdo são estritamente proibidas.
Na eventualidade de a receber por engano, agradecemos nos comunique, de imediato, esse facto, por telefone e nos devolva o original da mesma, por correio, para um dos endereços supra indicados.
As despesas com a sua devolução ser-lhe-ão reembolsadas. Obrigado.
Esta nota de confidencialidade não se encontrava no corpo da mensagem transmitida pelo mandatário da contraparte, mas antes relegada para local abaixo da respetiva assinatura do declarante. Também não estava repetida ou assinalada em qualquer outra parte da mensagem.
Tal como tem defendido o Conselho Regional de Lisboa e o Conselho Regional do Porto, o CRC entende que a simples a referência no template do mail ao conteúdo confidencial da comunicação não é suficiente para concluir pela absoluta confidencialidade da correspondência. Para que determinada correspondência fique abrangida pelo dever de reserva previsto no EOA, o seu subscritor terá, expressa e claramente, de referir que a mesma tem carácter confidencial, o que não é o caso.
Para o CRC, o conteúdo da mensagem de confidencialidade inserida nos mails leva a concluir que se destina a quaisquer terceiros que, por qualquer razão externa à vontade do seu declarante, tenham acesso ao mail.
Por outro lado, o declarante não se referiu à confidencialidade da sua mensagem ou, por qualquer forma, a deixou subentendida em qualquer outra parte do texto. Portanto, à exceção dessa menção genérica abaixo da assinatura, nada mais se refere que faça supor a existência da intenção do seu autor em atribuir caráter de confidencialidade à sua mensagem.
Por fim, a OA entende que do texto das duas comunicações não constam quaisquer factos sujeitos a sigilo, ou seja, o conteúdo não contém factos que digam respeito a negociações das partes, nem factos que tenham sido remetidos com caráter de reserva.
O declarante limita-se a transmitir que a sua cliente não aceita qualquer responsabilidade no incêndio, nem os danos que são alegados pela parte contrária. Refere ainda que a sua cliente, apesar disso, aceitou reparar os danos nos vidros, janelas e portas, factos que não são sigilosos, pois já tinham sido praticados e do conhecimento dos lesados dos quais podiam fazer prova, através de testemunhas e até através da confissão da cliente do advogado autor das mensagens.
Assim, conclui que a junção dos e-mails aos autos pela mandatária dos autores não viola o EOA, pelo que, nenhuma ilegalidade existe na sua junção.
Segredo profissional do advogado
Nos termos do EOA o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. O dever de segredo abrange também os documentos ou outras coisas que se relacionem com factos sujeitos a sigilo.
Este dever goza de proteção do Estado e funda-se no princípio da confiança necessário à execução do mandato. O segredo profissional apenas pode ceder em circunstâncias absolutamente excecionais, tal como consagrado no regime legal.
Os factos sigilosos de que um advogado tenha conhecimento direta ou indiretamente, no exercício das suas funções, ou por causa delas, regem-se pela regra da absoluta confidencialidade.
De acordo com o parecer da OA, saber o que são factos sigilosos implica sempre a realização de uma interpretação restritiva da norma do EOA. Assim, a interpretação deve orientar-se pelo seguinte:
- só quando estiver em causa um facto que obrigue a reserva é que o advogado estará sujeito ao dever de segredo, já que nem tudo que é dado a conhecer àquele terá esse caráter de confidência. Só os factos que se consideram imbuídos numa matriz de confiança é que integram o conceito de “factos sigilosos, seja pelo seu teor, seja pelas próprias circunstâncias do conhecimento (entendimento pacífico, nomeadamente na jurisprudência da OA);
- caso os factos (ou documentos) tenham carácter confidencial, o dever de guardar segredo pode ceder, no quadro legal estabelecido no EOA, nomeadamente através do mecanismo da dispensa de segredo profissional. Esta cedência é apreciada caso a caso e deve basear-se numa ponderação de valores. O EOA estabelece a possibilidade de revelar factos “confidenciais” perante a absoluta necessidade da defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente (ou representante deste).
Logo, a dispensa do segredo profissional tem carácter excecional – nos termos do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional – e deve aferir-se casuisticamente pela essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo sobre o qual incide o pedido de dispensa. Devem ser livremente apreciados os elementos de facto apresentados pelo requerente da dispensa.
Assim, o EOA prevê que os advogados podem revelar factos abrangidos por segredo profissional mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos do Regulamento de Dispensa.
É ao Presidente do Conselho Regional que cabe autorizar a revelação dos factos que, para isso, averigua as circunstâncias extraordinárias da absoluta necessidade da desvinculação. O fim que norteia esta avaliação é a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes.
Têm legitimidade para pedir o levantamento do segredo o advogado detentor do segredo e o tribunal. Em Portugal, nem o constituinte nem outros interessados no processo têm essa legitimidade.
O requerimento de pedido de dispensa de sigilo profissional é obrigatoriamente fundamentado sob pena de rejeição liminar e deve:
- identificar de modo objetivo, concreto e exato, qual o facto ou factos sobre os quais a desvinculação é pretendida;
- conter a identificação completa do advogado requerente;
- ser vir acompanhado dos documentos necessários à apreciação do pedido (se se tratar de pedido relativo a processo em curso, ser acompanhado das peças processuais pertinentes).
Não são admissíveis autorizações a posteriori, ou seja, posteriores à data de revelação com efeito retroativo. O pedido tem de ser sempre prévio ao efetivo levantamento do segredo.
Na correspondência entre advogados e entre estes e solicitadores o EOA obriga a que as comunicações entre advogados classificadas como confidenciais paralisem a possibilidade do recurso ao mecanismo geral do levantamento de sigilo e a possibilidade de as mesmas serem usadas como meio de prova. Sempre que as comunicações, por força da declaração expressa e inequívoca do declarante, estejam sujeitas ao regime de confidencialidade, ficam sujeitas a um regime de proibição absoluta de levantamento de sigilo, pelo que não pode ser autorizada a respetiva divulgação. É imprescindível que os factos transmitidos na comunicação sejam factos sigilosos.
Está sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos exista um interesse objetivo em que esses factos se mantivessem reservados.
Referências
Parecer n.º 12/PP/2022-C, da Ordem dos Advogados, de 14.07.2022
Estatuto da Ordem dos Advogados, artigos 92.º, 113.º
Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional), artigos 3.º e 4.º