A Ordem dos Advogados (OA) entende que o facto de uma advogada ser cunhada de uma testemunha, num processo em causa própria, não permite, por si só, antecipar qualquer desconformidade em relação aos deveres deontológicos a que está sujeita.
Num parecer emitido pelo Conselho Regional de Coimbra, a pedido do colega da parte contrária, a OA sustenta que é preciso concretizar o que sejam vantagens ilegítimas que a advogada procure no processo; desde logo, as decorrentes da vantagem de uma suposta facilidade de contacto com a testemunha, propiciada pela relação familiar, e de uma eventual ilegitimidade da possibilidade de influenciar o depoimento da testemunha com prejuízo para a descoberta da verdade.
E lembra que o dever de lealdade também existe entre colegas.
O caso
Um advogado num processo a correr no Tribunal Administrativo e Fiscal, solicitou à OA parecer em relação à colega, coautora nos autos, a advogar em causa própria e mandatária dos demais coautores, o seu cônjuge e filhas.
A questão incidia sobre possíveis problemáticas de atuação deontologicamente proibidas por parte desta advogada, principalmente porque uma das testemunhas arroladas pelos autores era o cunhado, e portanto, estava numa relação de proximidade com essa colega.
O advogado pretendia que o parecer da OA elucidasse sobre a conformidade dos deveres deontológicos do comportamento da colega. Pretendia saber se, face ao Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), haveria conflito de interesses e problemas de proteção do sigilo profissional, bem como se a atuação da advogada no processo poria em causa a proibição de contactos com testemunhas e o dever de lealdade, na sua vertente de não prossecução de vantagens ilegítimas ou indevidas.
Posição da OA
De acordo com a AO, é preciso que dos factos se possa concluir pela existência de deslealdade para com colegas e clientes e lembra que o advogado que solicitou o parecer também deve lealdade à sua colega.
No caso, não foram apresentadas à Ordem factos que permitissem concretizar eventuais vantagens ilegítimas, nem a influência da testemunha propiciada pela relação familiar com prejuízo para a descoberta da verdade, nem uma suposta deslealdade para com colegas e clientes.
Conclui que a factualidade relatada se resumiu ao facto de a advogada ser cunhada de uma testemunha, o que não permite, por si só, entrever qualquer desconformidade entre o comportamento imputado da advogada e os deveres deontológicos a que se encontra sujeita.
Proibição de contacto
Do EOA decorresse uma proibição terminante e absoluta de os advogados contactarem com testemunhas, mas no caso não foi apontado qualquer contacto entre a advogada e a testemunha em causa; apenas se alude à relação de proximidade familiar entre ambos o que, para a OA, não chega, já que é sabido que frequentemente familiares e afins que nem sequer se falam.
Para a OA, a proibição de contacto entre advogados e testemunhas do EOA não implica que esteja vedado aos advogados, por si ou por interposta pessoa, estabelecer contactos com testemunhas. O que lhes é vedado é estabelecer contactos com testemunhas ou demais intervenientes processuais com a finalidade de instruir, influenciar ou, por qualquer outro meio, alterar o depoimento, assim prejudicando a descoberta da verdade.
Para aplicar esta regra do EOA seria indispensável:
- a ocorrência de contacto entre a advogada e a testemunha; e
- que esse contacto tivesse visado instruir, influenciar ou, por qualquer outro meio, alterar o depoimento, prejudicando, desta forma, a descoberta da verdade.
Dever de lealdade
Nos termos do EOA, o dever de lealdade obriga a que não se procurem vantagens ilegítimas ou indevidas para o cliente. Para saber se este dever é cumprido ou não é preciso saber qual a factualidade concreta suscetível de integrar aqueles conceitos - não basta a pura e simples citação genérica e/ou abstrata dos preceitos estatutários.
Por outro lado, o advogado que solicitou o parecer também deve lealdade à sua colega. A OA lembra que a epígrafe do artigo do EOA em causa tem como epígrafe, precisamente “Deveres recíprocos dos advogados”.
A análise da observância de um dever implicará quase sempre a análise da observância do outro dever, pois é do equilíbrio entre ambos que se apura a justa proporção, concretamente determinada, da lealdade para com o colega e da lealdade para com o cliente.
Conflito de interesses
Nos termos do EOA, no conflito de interesses, o advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária, e deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
A questão coloca-se, pois, ao nível da aceitação do patrocínio, que ocorreu neste caso a 13 de janeiro de 2023 através de substabelecimento sem reserva a favor da advogada. Já o arrolamento da testemunha em causa, ocorreu cinco dias depois e a sua inquirição a 8 de fevereiro.
Assim, os factos que levantaram dúvidas (o arrolamento e a inquirição como testemunha de cunhado) foram posteriores à aceitação do patrocínio e, por conseguinte, à data dessa aceitação não poderiam relevar para o efeito.
Mesmo que fosse relevante, tratar-se-ia aí de recusar um novo cliente em atenção a um anterior cliente, o que manifestamente para a OA não era a circunstância em apreço. Neste processo os contornos são unicamente delineados entre uma advogada e uma testemunha, e não qualquer cliente, novo ou anterior, suscetível de ver perigar o sigilo profissional relativamente aos seus assuntos (no caso do anterior cliente) ou vir a beneficiar de vantagem ilegítima ou injustificada por força do conhecimento de tais assuntos pela advogada (no caso do novo cliente).
Referências
Parecer n.º 5/PP/2023-C, Ordem dos Advogados, de 31.03.2023
Estatuto da Ordem dos Advogados, artigos 99.º, 109.º, 112.º