O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu que existe culpa do peão pelo seu atropelamento, que exclui a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo automóvel, quando aquele, sendo adulto e surdo, tenha atravessado a faixa de rodagem depois de ter visto o veículo a circular na sua direção e quando o mesmo já se encontrava praticamente em cima do local.
O caso
Em junho de 2017, uma mulher, surda, foi atropelada ao atravessar a estrada para se dirigir ao veículo do seu marido que se encontrava estacionado do outro lado da faixa de rodagem. Em consequência, recorreu a tribunal pedindo para que a seguradora do automóvel que a atropelara fosse condenada a indemnizá-la pelos danos que sofrera. A ação foi julgada parcialmente procedente, considerando o tribunal que não era possível imputar a culpa pela produção do acidente, nem ao condutor do veículo, nem ao peão, e fazendo recair sobre o condutor a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos causados ao peão a título de responsabilidade pelos riscos associados à circulação do veículo. Condenada a indemnizar a lesada, a seguradora recorreu para o TRP, o mesmo tendo feito aquela, pondo em causa o valor da indemnização atribuída.
Apreciação do Tribunal da Relação do Porto
O TRP julgou procedente o recurso interposto pela seguradora, absolvendo-a, ao decidir que existe culpa do peão pelo seu atropelamento, que exclui a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo automóvel, quando aquele, sendo adulto e surdo, tenha atravessado a faixa de rodagem depois de ter visto o veículo a circular na sua direção e quando o mesmo já se encontrava praticamente em cima do local.
O facto de o peão ser surdo e não ouvir o barulho do motor do veículo é insuficiente para excluir a imputação do acidente ao peão, uma vez que sendo um adulto que certamente não se depara com essa situação pela primeira vez na vida, tendo visto o veículo em movimento, era-lhe exigido maior cuidado na tomada de decisão uma vez que a surdez não o priva de inteligência, raciocínio, experiência de vida, poder de observação e de ajustamento.
Um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, excluídos os casos de responsabilidade pelo risco, é a culpa do agente, a qual pode ter a forma do dolo ou da negligência ou mera culpa. No domínio dos acidentes de viação, a negligência traduz-se as mais das vezes na violação das regras de circulação rodoviária.
No caso, não é possível atribuir ao condutor do veículo automóvel a violação de qualquer regra de condução rodoviária ou mesmo de regra de cuidado no exercício dessa condução que permita fazer recair sobre ele qualquer juízo de censura passível de encerrar a afirmação de culpa ou negligência pela produção do acidente, uma vez que circulava na sua faixa de rodagem, sem ir em excesso de velocidade, quando o peão invadiu essa mesma faixa de rodagem num momento em que o veículo estava a cerca de 10 metros do mesmo, havendo apenas um espaço entre 1 a 2 segundos para reagir e fazer imobilizar o veículo e sendo impossível ao condutor, mesmo procedendo com destreza, desviar-se para a esquerda e evitar a colisão com o peão.
Pelo contrário, deve ser imputado ao peão esse juízo de censura resultante da violação não justificada de duas regras rodoviárias, mais propriamente, a regra que a obrigava a usar a passadeira situada a não mais de 50 metros para atravessar a faixa de rodagem e a regra que a impedia de iniciar o atravessamento da faixa de rodagem sem se certificar previamente que, tendo em conta a distância que a separava do veículo e a respetiva velocidade, o podia fazer sem perigo de acidente.
Estamos perante duas infrações totalmente imputáveis à esfera de autodeterminação do peão. Com efeito, ficou provado que antes de iniciar o atravessamento da faixa de rodagem, o peão, apesar de padecer de surdez, viu o veículo automóvel a dirigir-se na sua direção e mesmo assim decidiu atravessar a estrada, o que obriga a concluir que teve um comportamento particularmente negligente que conduziu ao seu atropelamento.
Nesse contexto, os riscos associados à circulação do veículo em nada contribuíram para o acidente, tendo o processo causal que gerou os danos sido desencadeado exclusivamente pelo comportamento do peão, não tendo sido ampliado ou reforçado por qualquer circunstância relativa ao veículo e aos riscos que a sua circulação envolve. Acresce que na génese desse comportamento esteve uma decisão consciente do peão ou, ao menos, uma decisão tomada por um adulto na posse da informação relevante e em função da qual um homem médio, ainda que surdo, não teria adotado semelhante decisão por a mesma representar uma exposição consciente a um risco acentuado ou grave. Sendo, assim, de excluir qualquer responsabilidade pelo risco e de afastar a responsabilidade do condutor do veículo.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 5080/18.0T8MTS.P1, de 2 de dezembro de 2021
Código Civil, artigos 503.º e 505.º
Código da Estrada, artigos 25.º, 99.º e 101.º