O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que um arguido indiciado como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, não pode beneficiar da flexibilização, para ir trabalhar, da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE), quando haja perigo de continuação da atividade criminosa; mais ainda se já teve agravação, por sua culpa, das medidas de coação que antes lhe haviam sido impostas.
O caso
Um arguido a quem tinha sido aplicada a medida de coação obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE) pediu a alteração dessa medida para outra menos gravosa que permitisse o exercício da sua atividade profissional ou, a manter-se, que lhe fosse autorizada a saída da sua residência para trabalhar.
O homem estava indiciado por crime de violência doméstica agravado. Argumentou que precisava de trabalhar sob pena de se acentuarem as suas dificuldades económicas, comprometendo a sua subsistência e o cumprimento de obrigações familiares no que respeita aos filhos menores. E pretendia retomar uma atividade laboral regular, em local fixo, ambiente supervisionado e distante da ofendida.
A 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a substituição pedida pelo arguido. Os autos indiciavam fortemente que o arguido tinha praticado os factos. As agressões da vítima, documentadas clinicamente, incluíam traumatismo craniano e cortes na garganta com faca. E após medidas de coação que foram sendo agravadas, o arguido acabou por ser afastado da residência e imediações, por perigo de continuação da atividade criminosa e atentado contra a integridade física e/ou contra a vida da ofendida.
O arguido recorreu.
Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL negou provimento e confirmou a decisão recorrida.
Para que a OPHVE pudesse ser alterada para medida menos gravosa, teria de ter surgido algum facto ou circunstância que implicasse a insubsistência ou a diminuição das exigências cautelares, após o interrogatório judicial que aplicou a medida ao arguido.
Por outro lado, a OPHVE é uma verdadeira medida privativa da liberdade e impõe ao arguido a obrigação de não se ausentar ou não se ausentar sem autorização da habitação própria ou de outra em que no momento resida.
A autorização para se ausentar da habitação constitui uma exceção, e só pode ser autorizada judicialmente se justificada por motivos também excecionais como consultas ou tratamentos médicos, cumprimento de relevantes obrigações sociofamiliares (visita a familiares gravemente doentes, comparência em velório ou funeral).
Uma regular ausência quer para desempenhar uma atividade profissional (ou para estudar), implicaria regulares e continuadas deslocações da habitação para o local de trabalho, o que redundaria num regime de semidetenção que não se enquadra nas justificações pontuais, excecionais e ponderosas que a lei prevê. Permitir essa saída para trabalhar enfraqueceria o carácter cautelar da medida de coação, desvirtuando parte da sua natureza detentiva cautelar.
Na obrigação de permanência na habitação (e na prisão preventiva) a lei determina que o juiz proceda oficiosamente, pelo menos de três em três meses, ao reexame da subsistência dos seus pressupostos e, ainda, sempre que no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.
A substituição por medida menos gravosa ocorrerá quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, caso em que o juiz a substitui por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução. Podendo ter lugar oficiosamente, a requerimento do arguido ou do Ministério Público.
Ou seja, a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira decisão e a segunda ou subsequentes decisões de reexame dos pressupostos de facto e de direito das medidas de coação, maxime das privativas de liberdade.
Sem alteração dos dados de facto ou de direito, o juiz não pode “reconsiderar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão; isto porque, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objeto.
Assim, as medidas de coação estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, isto é, o tribunal que aplicou a medida só a pode substituir ou revogar quando tenha ocorrido uma alteração dos pressupostos de facto ou de direito.
Para o TRL, a possibilidade de exercer uma atividade profissional e a necessidade de o fazer para assegurar as necessidades básicas, não constitui circunstância suscetível de alterar os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de coação em apreço e, consequentemente, fundamentar uma medida de coação menos gravosa.
O TRL entende que não existe qualquer violação da Constituição da República nem da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A OPHVE, na fase processual em que o processo de inquérito se encontra, era a única medida adequada às exigências cautelares do caso e proporcional à sanção que previsivelmente poderia ser aplicada, em caso de condenação.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.04.2025
Código do Processo Penal, artigos 201.º, 212.º, 2013.º
Código Penal, artigo 80.º/1