O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que existe justa causa para a resolução de contrato de formação de piloto de linha aérea de avião quando a insuficiência de aeronaves e instrutores para a execução da vertente prática de instrução de voo do curso, as interrupções prolongadas entre os voos realizados e a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves, fruto da sua deficiente manutenção, tenham posto em causa a confiança do formando na capacidade da entidade formadora no cumprimento exato do programa de formação.
O caso
Em agosto de 2018, um homem inscreveu-se num curso teórico prático de piloto de linha aérea de avião pagando parte do custo total do mesmo e tendo assinado um contrato de formação.
Porém, devido à pandemia, só foi possível efetuar 12 voos e a época de exames foi sucessivamente adiada. Entretanto ocorreu um acidente com uma das aeronaves, devido à fala de manutenção da mesma, tendo, em agosto de 2021, a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) comunicado a aplicação à entidade formadora de uma medida cautelar de limitação de aceitação de novos alunos pelo facto de não ter implementado medidas adequadas para obstar às desconformidades de insuficiência de instrutores e incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos.
A insuficiência de aeronaves e de instrutores da formadora e as interrupções prolongadas nos voos foram causando no formando sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança que levaram a que, em novembro de 2020, rescindisse o contrato de formação, solicitando o reembolso do que tinha pago.
A entidade formadora rejeitou o pedido, o que o levou a recorrer a tribunal, o qual reconheceu a existência de justa causa para a resolução do contrato de formação, condenando a entidade formadora na restituição da totalidade dos montantes pagos pelo curso. Inconformada esta recorreu para o TRL.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL julgou improcedente o recurso ao decidir que existe justa causa para a resolução de contrato de formação de piloto de linha aérea de avião quando a insuficiência de aeronaves e instrutores para a execução da vertente prática de instrução de voo do curso, as interrupções prolongadas entre os voos realizados e a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves, fruto da sua deficiente manutenção, tenham posto em causa a confiança do formando na capacidade da entidade formadora no cumprimento exato do programa de formação.
No âmbito de contrato de formação, relativo a curso integrado de piloto de linha aérea de avião, para que haja justa causa de resolução é fundamental que se verifique uma justificada perda de confiança na capacidade da entidade formadora no cumprimento exato do programa contratual de formação em falta, ou seja, que o provado incumprimento da formadora, violador do programa contratual outorgado, dificulte, torne inexigível ou insuportável a manutenção da relação contratual.
Estando-se perante um contrato de prestação de serviços dotado de uma natureza específica e singular, em cujo cumprimento ou execução impera uma diligência qualificada, uma necessidade de integrar níveis de conhecimento teóricos com uma consequente componente prática, num período temporal devidamente delimitado, e sujeito a posterior aferição em exames a realizar perante uma terceira entidade devidamente habilitada e reconhecida, resulta evidente que ocorrências que maculem o nível relacional entre entidade formadora e o formando, colocando em causa o desiderato contratual formativo, podem justificar a existência de justa causa para a resolução do contrato.
A insuficiência provada de aeronaves e instrutores para a execução da vertente prática de instrução de voo do curso formativo, as interrupções prolongadas entre os voos realizados, que afetam a apreensão efetiva e consolidada de conhecimentos, não contribuindo para um adquirir de confiança do formando, antes causando-lhe sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança, bem como a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves, fruto da sua deficiente manutenção, o que não terá deixado de afetar a confiança do formando na fiabilidade técnica da formadora na prossecução da vertente prática do curso, configura-se como quadro factício próprio e pertinente a justificar que não fosse exigível ao formando a manutenção do contrato de formação em execução, antes se traduzindo numa efetiva justa causa da operada resolução contratual.
A retroatividade dessa resolução só faz sentido em relação ao que foi prestado sem contrapartida, pois o sinalagma e o equilíbrio jurídico do contrato impõem que o valor da utilidade que adveio da execução do mesmo deverá ser pago. Todavia, nada sendo aproveitável, por parte do formando, da formação que lhe foi prestada, para uma eventual futura formação em curso de idêntica natureza, a medida da responsabilidade indemnizatória deve corresponder à totalidade do tempo e recursos financeiros despendidos pelo formando, sem qualquer retorno.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de março de 2025
Código Civil, artigos 1154.º, 1156.º e 1170.º