O Tribunal Constitucional (TC) não declarou a inconstitucionalidade de normas da lei que estabelece a obrigação de comunicação à AT de determinados mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal, e que transpôs em 2020 as novas regras da Diretiva da Cooperação Administrativa no Domínio da Fiscalidade (DAC6). Entendeu que não implicam a violação dos parâmetros de constitucionalidade suscitados no pedido de fiscalização submetido pela Provedora de Justiça, nem qualquer outro, atendendo ainda à necessária interpretação conforme com o Direito da UE em causa e sindicadas e dos preceitos constitucionais pertinentes.
Refira-se que o acórdão foi decidido com cinco votos vencidos.
O caso
No âmbito da lei que estabeleceu a obrigação de comunicação à AT de determinados mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal, a pedido da Ordem dos Advogados, a Provedora de Justiça tinha suscitado a fiscalização de normas relativas ao cumprimento da obrigação de comunicação pelos advogados e ao seu dever de sigilo.
Considerou que essas normas vão para além do que a própria diretiva prevê, impondo a prevalência absoluta do dever de comunicação sobre o dever de sigilo profissional do advogado, sem margem de ponderação.
Estaria aqui em causa o princípio da proporcionalidade.
A diretiva foi alterada em 2018 e alargou o âmbito das informações sujeitas a troca automática e obrigatória entre Estados-Membros, passando a incluir os aí designados mecanismos de planeamento fiscal agressivo, de forma a assegurar que as autoridades fiscais dos Estados-Membros disponham de informações completas e pertinentes sobre tais mecanismos. Assim, ao prever que o dever de comunicação do intermediário prevalece, em qualquer caso e de forma absoluta, sobre o dever de sigilo profissional a que esteja igualmente sujeito, a lei nacional não salvaguarda um regime específico para os casos em que o intermediário seja um advogado.
Defendeu tratar-se de matéria de direitos fundamentais em que o dever de sigilo serve três interesses: o do cliente, o da boa administração da justiça e o do profissional, já que o segredo profissional do advogado avulta como um princípio de ordem pública, funcionalmente indispensável ao papel da administração da justiça na promoção do Estado de Direito.
Decisão do Tribunal Constitucional
O TC decidiu não declarar a inconstitucionalidade das normas sindicadas por não implicarem violação dos parâmetros de constitucionalidade suscitados no pedido, nem qualquer outro.
O legislador nacional goza de uma margem particularmente significativa na transposição da Diretiva, nomeadamente quanto à questão das obrigações de comunicação por parte dos intermediários sujeitos a deveres de sigilo legais ou contratuais, com destaque para os advogados e para a derrogação de tais deveres determinada pelo regime em causa.
O cumprimento das obrigações de comunicação previsto na lei não se baseia apenas na norma que prevê a prevalência dessa comunicação sobre o dever de sigilo do advogado. Para o TC, vários outros normativos são aqui chamados para se poder considerar – ou não – que a derrogação dessa obrigação passa o teste da proporcionalidade.
Para o TC, é evidente a inexistência de um desequilíbrio ostensivo entre o controlo dos mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal – e com potencial para, pelo menos hipoteticamente, conduzirem a práticas de elisão ou de evasão fiscal – e a obrigatoriedade de os intermediários, no caso quando advogados, estarem obrigados a comunicar tais mecanismos à AT, prevalecendo tais obrigações de comunicação sobre o dever de sigilo a que, legal ou contratualmente, estejam obrigados.
Não há, em termos de “justa medida”, qualquer evidência de desproporção, uma razão mais para respeitar as soluções plasmadas pelo legislador nas normas sob fiscalização.
O TC entendeu ainda que não está em causa qualquer autoincriminação e não é suficiente a demonstração da proporcionalidade da restrição – ou das restrições – operadas pelas normas fiscalizadas. O TC esclarece aqui o direito ou prerrogativa à não autoincriminação (princípio nemo tenetur se ipsum accusare), como decorrência do princípio da presunção da inocência.
Os problemas associados ao privilégio contra a autoincriminação só se colocam no âmbito processual-penal, esclarece.
Sublinha que Constituição não consagra expressamente esse princípio, mas isso não impede o seu reconhecimento como um princípio constitucional implícito a que corresponde um direito fundamental não escrito. Este princípio visa assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo conteúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e pela nulidade das provas proibidas em virtude de terem sido obtidas mediante a colaboração involuntária do arguido em consequência do uso ilegítimo de meios coercivos ou de meios enganosos.
Acrescenta ainda o TC que os direitos ao silêncio e à não autoincriminação devem considerar-se incluídos nas garantias de defesa próprias do processo penal, não deixando estes direitos processuais de proteger mediata ou reflexamente a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais com ela conexos, como sejam os direitos à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à privacidade, não se revelando necessário, para sustentar o acolhimento constitucional, o recurso a parâmetros mais genéricos ou distantes como o direito ao processo equitativo.
O direito tributário faz impender sobre o contribuinte um dever geral de colaboração e de verdade. Obriga o contribuinte a comunicar às autoridades tributárias todos os factos fiscalmente relevantes; enquanto que o direito processual penal assegura ao arguido o mais consistente e irredutível privilege against self-incrimination, não podendo, em nenhum caso, ser coagido a contribuir ativamente para a sua condenação.
Assim, a função do nemo tenetur não é isentar o contribuinte do cumprimento dos seus deveres tributários, pois ele só protege contra a coerção no sentido da autoacusação e de uma condenação criminal assente na colaboração ativa do arguido coativamente imposta.
Referências
Acórdão n.º 548/2024 do Tribunal Constitucional - DR n.º 179/2024, Série II de 16.09.2024
Lei n.º 26/2020 - DR n.º 140/2020, Série I de 21.07.2020, artigos 10.°, n.º 2, 13.°, n.º 4 e 14.°, n.º 1
Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15.02.2011
Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho, de 25.05.2018
Estatuto da Ordem dos Advogados, artigo 92.°