O Supremo Tribunal Administrativo (STA) decidiu que o momento relevante para efeitos da verificação da existência de relações especiais, enquanto requisito da aplicação do regime dos preços de transferência, é o da celebração do negócio.
O caso
Uma empresa mineira foi sujeita a uma inspeção tributária referente ao exercício de 2008 da qual resultou uma liquidação adicional de IRC com fundamento na desconsideração como custo fiscal de menos-valias declaradas com a venda de uma lavaria industrial e do respetivo equipamento. Lavaria essa que fora alienada a uma outra sociedade que pertencera ao mesmo grupo por um valor total de 1 euro. A empresa impugnou judicialmente a liquidação, sem sucesso, decisão da qual recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) e depois para o STA.
Apreciação do Supremo Tribunal Administrativo
O STA concedeu provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e julgando procedente a impugnação judicial, ao decidir que o momento relevante para efeitos da verificação da existência de relações especiais, enquanto requisito da aplicação do regime dos preços de transferência, é o da celebração do negócio.
O tribunal não pode apreciar a validade da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos que não os que constam da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constem dessa fundamentação.
Não tendo nunca a Administração Tributária (AT) invocado como fundamento para a correção efetuada a existência de relações especiais à data da negociação, não pode o tribunal concluir pela legalidade da liquidação impugnada com base nesse fundamento que a AT não invocou aquando da prática do ato, considerando que, embora a operação de venda da lavaria industrial tivesse ocorrido formalmente em 31/12/2008, data em que as partes no negócio já não estavam em situação de relações especiais, as condições e termos do negócio tinham sido acordados previamente. Tanto basta para considerar que o tribunal recorrido laborou em erro de julgamento, a determinar a revogação do seu acórdão.
Mas ainda que se pudesse considerar que o TCAS não apreciou a legalidade da liquidação impugnada à luz de fundamentação que não foi a utilizada pela AT para a prática da liquidação, nunca este ato se poderia manter uma vez que, embora as partes intervenientes tivessem acordado as condições de venda da lavaria industrial quando se encontravam em situação de relações especiais, a venda só se concretizou posteriormente, numa data em que as sociedades já eram entidades independentes, tendo deixado de integrar o mesmo grupo, uma vez que o que releva é a situação à data da celebração do negócio.
Embora em matéria de preços de transferência a lei nada diga sobre momento em que se deve aferir essa existência de relações especiais, ela é clara ao fazer referência a operações efetuadas e, consequentemente, à data em que as transações são celebradas e produzem os seus efeitos jurídicos e económicos, e não quando são negociadas, entre entidades vinculadas.
De facto, é uma regra geral a de que o regime legal aplicável e à luz do qual deve aferir-se a validade do ato de liquidação é o vigente na data em que o facto tributário ocorre, o que significa que os requisitos da aplicação desse regime devem estar verificados nessa data, ou seja, no caso, que a situação de relações especiais deve verificar-se à data em que foi celebrado o negócio que gerou a menos-valia. Na ausência de indicação em contrário, não pode considerar-se que esse momento seja outro.
Visando o regime dos preços de transferência proteger a concorrência e a paridade entre entidades vinculadas e não vinculadas, procurando evitar que entidades dentro de um grupo e mantendo o controlo sobre ativos transferidos, transfiram esses mesmos ativos entre si a preços diferentes dos praticados em mercado livre, para com isso desviar lucros ou criar perdas sujeitas a um regime fiscal mais vantajoso, se as partes não forem relacionadas no momento em que a operação se efetiva e se produzem os seus efeitos jurídicos, económicos e fiscais na esfera dos intervenientes não pode existir qualquer transferência de lucros ou perdas dentro do grupo que possa justificar a aplicação desse regime de preços de transferência.
Se a AT entendia haver motivo para desconsiderar os efeitos tributários da alienação da lavaria devia ter lançado mão de outros mecanismos ao seu dispor, designadamente da cláusula geral anti abuso. O que não podia era, como fez, considerar que existiam relações especiais entre os intervenientes no negócio, a justificar a aplicação do regime dos preços de transferência.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de outubro de 2024
Código do IRC, artigo 58.º (atual 63.º)
Lei Geral Tributária, artigo 38.º n.º 2