O Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN) decidiu que, sendo possível obter um recibo ou fatura de um pagamento, não é admissível que o comprovativo desse pagamento possa ser substituído por um documento interno elaborado pela própria impugnante, no caso, a Santa Casa da Misericórdia.
O caso
A Santa Casa da Misericórdia (SCM) viu indeferido o seu recurso hierárquico que comportou a apreciação da legalidade de liquidação de IRC, tributação autónoma e respetivos juros compensatórios referentes ao ano de 2006. A SCM pretendia a a anulação da tributação autónoma.
O relatório da AT tinha considerado que a SCM tinha pago despesas não documentadas no valor de 34.181,99€, correspondente a 19.135,00€ de Honorários e 15.046,99€ de Outras Despesas.
A SCM alegou que não se estava perante tributação autónoma, que visa sancionar o pagamento de rendimentos confidenciais a terceiros, por forma que estes deixem de pagar impostos e que a taxa desta tributação, e que no caso das IPSS atinge os 70% do valor do rendimento pago.
Defendeu que eram despesas de representação, às quais são aplicáveis taxas inferiores, ou eram meras ajudas de custo e de formação, diretamente dedutíveis. Mais alegou que os extratos bancários não indiciavam qualquer pagamento a terceiro beneficiado, mas sim a natureza da despesa para pagamentos de produtos alimentares, de limpeza, assinaturas de revistas, quotas de filiação, portagens, despesas com colaboradores, com cartão bancário, com alimentação, deslocações e de despesas de representação e outras para o exercício das suas atividades.
Quanto às despesas de honorários em causa, da leitura dos respetivos documentos integrados no Processo Administrativo, não resultava indiciado que qualquer delas correspondesse a pagamentos confidenciais a terceiros que, por essa via, escapem ao pagamento de impostos sobre os rendimentos.
O tribunal de 1ª Instância anulou as liquidações de IRC, mas manteve as tributações autónomas. Tendo o Relatório de Inspeção Tributária concluído que o suporte documental existente não permitia identificar cabalmente os beneficiários das operações, nem a sua natureza, a SCM não tinha provado factualidade que permitisse revelar quem recebeu as quantias ou a sua concreta natureza. Referências genéricas como “Outros custos” tiveram como beneficiários “utentes da Creche e dos Lares”, o “Grupo Coral da Misericórdia” e “funcionários ou colaboradores da Farmácia e do Hospital, identificados como «OO», «PP», «GG» ou “Sr. «GG»”, sem identificar cabalmente cada um desses beneficiários; relativamente às despesas suportadas com “Honorários”, a também não foram identificados os beneficiários das quantias.
A SCM recorreu.
Decisão do Tribunal Central Administrativo Norte
O TCAN negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.
Considerou que, verificado que esteja um pagamento, diante do qual é possível obter um recibo ou fatura, não é admissível que o comprovativo desse pagamento possa ser substituído por um documento interno elaborado pela própria impugnante.
Portanto, as despesas contabilizadas pela SCM que não tenham documento de suporte externo, quando o deviam ter, devem considerar-se despesas não documentadas. Ainda que o sujeito passivo elabore documentos da sua lavra, tal situação não o desonera do dever de apresentar documentos externos que comprovem as despesas que contabilizou apenas com a documentação por si elaborada.
Assim, não sendo apresentados documentos idóneos de suporte da contabilidade, está-se diante de uma situação de despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma, nos termos do Código do IRC.
O TCAN refere que, segundo o mencionado no Relatório de Inspeção, a tributação autónoma foi realizada com fundamento em «Despesas não documentadas», seja para as despesas descritas como aquisições, seja para os designados honorários, o que foi corroborado pela inscrição efetuada. E é neste enquadramento que a situação dos autos deve ser apreciada e não, segundo alegou a SCM, como despesas confidenciais.
O TCAN remete para jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão STA de 02.02.2022) que já se pronunciou diversas vezes sobre a necessidade de existirem documentos para comprovarem a contabilidade, mormente nas situações em que é aplicável o regime das despesas não documentadas do Código do IRC.
O Código do IRC prevê que as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos e é claro no sentido de que a tributação autónoma incide sobre despesas não documentadas.
A despesa não documentada é aquela a que falta em absoluto o comprovativo documental (Acórdão STA de 19.04.2017).
Trata-se de despesa que é contabilizada pelo sujeito passivo sem suporte documental.
Contudo, não é esta a situação dos autos, em que as despesas foram registadas na contabilidade com apoio em documentos (vendas a dinheiro e faturas).
A lei fala em despesa não documentada reportando-se à documentação do ato pelo qual o sujeito passivo suporta a despesa que é suscetível de afetar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Não releva, nesse âmbito, a documentação do destino da despesa, ou da identificação do seu beneficiário.
Despesa não documentada é uma despesa sem documento e só estas o legislador sujeitou a tributação autónoma.
O TCAN sublinha que, apesar de uma despesa estar documentada e, por isso, não estar sujeita à tributação autónoma, tal não significa que passe o crivo da “indispensabilidade”, ao ponderar-se a atividade do sujeito passivo, a natureza e valor dos bens adquiridos para “oferta”, e a não identificação dos beneficiários desses bens, e seja aceite como gasto.
Para o TCAN, os documentos internos designados como «Dc. Interno» ou «Nota Interna», espelham realidades externas, ou seja, pagamentos a terceiros ou despesas incorridas fora da instituição. Portanto, não revelava dificuldade o pedido de um recibo ou de um documento emitido no ato de aquisição ou de um documento comprovativo de qualquer outra despesa. Conforme referiu a Inspeção Tributária, a falta de documentos externos das despesas, situação pode originar uma duplicação na contabilização das mesmas.
Mesmo as despesas em que consta a designação no extrato bancário de um eventual destinatário, não é correspondida pela fatura ou recibo que esse destinatário deva emitir; o que significa que não se sabe o nome de quem foi emitida a fatura ou o recibo de tais pagamentos, pelo que não podem ser assim, tão simplesmente, serem admitidos.
O TCAN refere ainda que a SCM tinha sido notificada para apresentar os documentos comprovativos de tais despesas, mas não os apresentou, nem no âmbito da inspeção, nem depois, junto do Tribunal. Trata-se, portanto, de situações em que era possível à impugnante apresentar documentos externos, como por exemplo, os pagamentos de serviços prestados por arquitetos, engenheiro e pintor, assim como outras despesas.
Referências
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 23.05.2024
Código do IRC, artigos 23.º, 88.º/1