I – O artigo 2034.º do Código Civil, que consagra um elenco de causas de indignidade sucessória, não admite uma analogia livre, mas uma analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, é permitida analogia legis, mas não a analogia iuris.
II - Estamos perante uma questão de direito civil, de pendor marcadamente ético e moral, não sendo, portanto, aplicável, no domínio da indignidade sucessória, o princípio de direito penal da proibição da analogia in mala partem, ou seja, contra o autor do delito. É que, enquanto no direito penal estamos perante a tutela dos direitos dos cidadãos em face do poder punitivo do Estado, que lhes pode impor medidas restritivas da liberdade, no regime da indignidade sucessória apenas se nega a concretização de uma expetativa de herdar.
III - A aplicação analógica surge como desajustada à solução do caso concreto, já que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso.
IV – A solução de ser o julgador a criar uma norma ad hoc elaborada dentro do espírito do sistema, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, é sempre delicada por constituir uma atividade semelhante à legislativa.
V - Assim, resta apreciar o caso destes autos à luz da figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil e que tem contornos estritamente objetivos, não sendo exigível a intenção do agente ou qualquer juízo de censurabilidade sobre a sua conduta.
VI - Para a determinação da existência de abuso do direito o que importa é analisar o resultado decorrente da conduta, perante os valores e princípios jurídicos vigentes, e não a conduta em si mesma.
VII – Atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, atentou contra a vida do pai e da irmã, e vem depois, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, reclamar o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único.
VIII – O exercício do direito a herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si causada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal.
IX – Admitir esta possibilidade seria contrariar o princípio normativo e constitucional da tutela absoluta do direito à vida (artigo 24.º da Constituição), que constitui também um princípio de ordem pública.
Processo n.º 2150/22.3T8TVD.L1.S1