O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que atos de praxe que ocorram em espaços e no decurso de ações fora da jurisdição da Universidade, impedem-na de adotar medidas de intervenção direta e exercer ações de vigilância e controle. E não existindo regulamento nem nexo de causalidade, aquela não se pode responsabilizar por acidente ocorrido em noite de praxe, conduzida numa praia durante o fim-de-semana. Mantém-se assim a improcedência das ações movidas pelos pais dos estudantes mortos em 2013 no contexto da praxe académica realizada numa praia de Setúbal.
O caso
Os autores instauraram ações declarativas contra a COFAC, a Universidade Lusófona, e contra outros, incluindo o chamado Dux, o chefe máximo da Praxe Académica, pedindo a condenação solidária no pagamento de indemnizações pela perda dos filhos e pelo sofrimento antes da morte.
Os seis jovens tinham morrido em 2013, numa praia, afogados após terem sido arrastados para o mar por uma onda, no contexto de praxe académica.
Entre as 0h00 e as 2h00, quando estavam sentados na praia, aqueles jovens foram surpreendidos por uma onda que lhes embateu com força do lado direito e os envolveu, levando-os para a zona da rebentação. Após terem sido atingidos por essa primeira onda, foram posteriormente envolvidos em ondas sucessivas, algumas com dimensão de cerca de 3 a 4 metros e com intervalo de 12 a 14 segundos, o que os impediu de sair da água, à exceção do Dux; os jovens acabaram por falecer, por submersão.
As várias ações foram apensadas e julgadas no Juízo Central Cível de Setúbal, que as considerou totalmente improcedentes. Os pais recorreram para o Tribunal da Relação de Évora, o qual confirmou a decisão da 1.ª instância a 30.06.2022. Consideraram que os jovens se tinham colocado numa situação de perigo, e que não era possível concluir que o Dux tivesse qualquer dever de garante da segurança dos seus colegas, por força do seu cargo na hierarquia da praxe. Quanto à responsabilidade da Universidade, a morte dos jovens não se inscrevia no perímetro da execução dos contratos de prestação de serviços de ensino celebrados, nem derivava de qualquer fonte de perigo que aquela tivesse criado. Pelo contrário, tudo tinha ocorrido num local sobre o qual a Ré não tinha qualquer poder de controlo.
Inconformados, interpuseram recurso de revista excecional para o STJ. Defenderam a necessidade de apreciação do tema para uma melhor aplicação do Direito, por ser uma questão atual e manifestamente complexa. A COFAC teria permitido e continuava a permitir que, no seu seio, exista uma organização de natureza praxista sem qualquer regulamentação ou controle. Defendeu ainda que o chamado Dux, chefe máximo da Praxe Académica, organização a que os alunos pertenciam, teria o dever de defender a vida e a integridade física dos colegas, membros subalternos dessa entidade. Para os pais, a COFAC infringiu o dever de atuar de boa-fé violando deveres acessórios de conduta que, se observados, lhe impunham uma vigilância e controle sobre as atividades praxistas dos seus estudantes.
Decisão do Supremo Tribunal de Justiça
O STJ voltou a julgar improcedentes as ações interpostas pelos pais dos alunos falecidos.
Para o STJ, a deslocação à praia e o que nela ocorreu traduz-se numa ação de grupo em que não é possível imputar Dux um papel influente ou promotor da exposição ao perigo que se distinga dos comportamentos dos demais jovens. Ou seja, situação apresenta-se como uma ação conjunta de autocolocação em perigo de todos os elementos do grupo, embora no processo não se tenha cionseguido apurar dados que permitam concluir que algum destes jovens não se encontrava em condições de decidir, com autonomia e, portanto, responsavelmente.
Mas, nas situações de exposição ao perigo inseridas num contexto de organização conjunta de todos aqueles que nela participaram, é possível imputar os resultados dessa exposição a um dos participantes, quando ele se encontra numa posição de garante nessa organização, com o dever de evitar tal exposição, e nada faz, com a consequente desresponsabilização ou atenuação da autoresponsabilidade dos demais coparticipantes lesados.
A posição de garante é ocupada por aqueles sobre os quais recai um dever jurídico que pessoalmente os obriguem a agir, tomando as medidas necessárias para que não ocorra o resultado danoso, podendo esse dever ter diferentes origens e fundamentos, residindo o denominador comum da equiparação da omissão à ação na situação concreta, nas exigências de solidariedade entre os homens no seio da comunidade.
Um dos tipos de deveres jurídicos são os deveres inerentes a uma relação hierárquica, em que, por força do cargo que alguém desempenha numa determinada organização, lhe está cometida a função de zelar pela segurança de determinadas pessoas que lhe devem obediência, recaindo sobre ele um dever de evitar a colocação dessas pessoas em perigo.
O STJ ressalva que, apesar de o funesto incidente ter ocorrido num fim de semana dedicado a atividades de praxe, a factualidade provada não forneceu os elementos suficientes para se concluir que o Dux, naquele ato de exposição ao perigo coletivamente assumido, se encontrava investido numa posição de garante, assim como não se provou que ele nada tenha feito para evitar essa exposição.
O ato de inscrição ou matrícula de um estudante num curso do ensino superior numa universidade traduz-se na celebração de um contrato de ensino que é fonte de múltiplos deveres laterais, entre os quais se encontra o dever de zelar pela segurança e proteção dos direitos individuais dos estudantes, mormente quando estes se encontrem nas instalações da universidade ou em atividades por ela promovidas ou organizadas.
O STJ reconhece que a existência de praxes académicas é um fator de risco para a segurança e liberdade dos estudantes, apesar de poder constituir uma forma de integração dos novos estudantes na vida académica e de desenvolvimento de sentimentos de camaradagem e solidariedade no seio da universidade. É uma fonte de violações de direitos dos estudantes, aliadas a essas práticas, tais como a violência a coação física e psicológica, o bullying, o hazing, a criação de situações de perigo ou a discriminação, recaindo sobre as instituições universitárias o dever de adotar medidas e precauções que evitem a violação dos direitos dos estudantes em resultado de atividades praxistas.
Mas, relativamente aos atos de praxe que ocorram, como neste caso, em espaços e no decurso de ações fora da “jurisdição” da Universidade, esta não tem a possibilidade de adotar medidas de intervenção direta e de aí exercer ações de vigilância e controle, apenas podendo desenvolver prévias ações de promoção de uma cultura de respeito, segurança e responsabilidade entre os estudantes, de modo a mitigar os riscos associados às praxes e a fomentar um ambiente universitário que evite más práticas.
Uma vez que à época não existia um dever jurídico de formalmente regulamentar as atividades de praxe pelas universidades, não é possível afirmar que a entidade gestora da Universidade em causa tenha incumprido qualquer dever lateral contratual nesta matéria que a possa responsabilizar pelo ocorrido.
Entendeu o STJ que não tinha ficado provado no processo que a universidade não havia adotado comportamentos de sensibilização dos estudantes para a prática de uma praxe que respeitasse os direitos destes; tambám não se verificava um nexo de causalidade entre o incumprimento de um qualquer dever lateral de prevenção do perigo e o trágico desfecho ocorrido nessa noite na praia.
Não era, pois, possível, responsabilizar a Universidade pelo ocorrido.
Voto vencido
Em voto vencido, a relatora do acórdão afasta-se das decisões da 1ª e 2ª instâncias e da posição final do STJ.
Entendeu que a atitude de passividade da COFAC é especialmente reprovável, pois trata-se de pessoa colectiva de reconhecido interesse público e, em particular, de uma cooperativa, instituidora de um estabelecimento de ensino universitário.
Já o DUX, agiu com negligência consciente e a sua atuação teve um impacto direto nos danos. Tivesse ele feito uso da sua posição de liderança, e ter-se-ia com toda a probabilidade evitado o acidente.
Considerou que a relação entre a atitude da COFAC e o acidente é mais remota no plano estrito da causalidade adequada. Não é, de facto, seguro que uma atitude diversa da COFAC tivesse aptidão para impedir completamente que os jovens se tivessem posto naquela situação de perigo; apenas é previsível que uma atitude diversa da COFAC teria incutido no Dux uma maior consciência da sua responsabilidade e do dever de prevenir o perigo que, em concreto, sobre ele impendia. Também é previsível, como se disse, que o fim de semana tivesse decorrido em termos diferentes daqueles em que decorreu, não se tendo registado o consumo generalizado de álcool e, pelo menos para um dos jovens, de substâncias alucinogénias, não tendo os jovens ficado limitados no seu discernimento e na sua capacidade para reagir ao perigo.
Entendeu ainda que nas situações de favorecimento ou contribuição para uma exposição de terceiros a uma situação de perigo, a responsabilidade aquiliana residirá na violação de um dever geral de precaução ou de prevenção de perigo, inerente a um domínio dessa exposição, o qual permitirá estabelecer um nexo de imputação do resultado lesivo à conduta de favorecimento à exposição a uma situação de perigo.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.04.2024
Código Civil, artigos 70º, 81º, 483º, 486º, 496º, 562º, 798º, 799º, 342º e 563º