O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu que uma eventual dessintonia entre as instruções recebidas e os termos da transação, por parte do advogado, não constitui fundamento de recurso de apelação da sentença homologatória.
Não há razão válida para afirmar a existência de vício da sentença recorrida, por o advogado interveniente na transação não ter capacidade ou legitimidade para o ato, quando o mandatário, interveniente no ato, estava munido com procuração com poderes especiais para o efeito, especificamente para desistir do pedido e para transigir.
O TRP entendeu que a procuração constitui instrumento bastante para habilitar o mandatário a transigir, sem necessidade de fazer intervir o mandante.
O caso
Um homem e a sua mulher intentam contra C uma ação para ser declarada a revogação do contrato de doação de abril de 1998 ou a caducidade do contrato de doação, com as legais consequências. Já no decurso da audiência final, as partes transigiram.
O tribunal julgou válida a transação e homologou-a por sentença, condenando o autor, as habilitadas e o réu; estavam presentes o autor, representado pelo mandatário com procuração com poderes especiais, as habilitadas e o réu C representado pela mandatária.
O autor recorreu, defendendo que a sentença homologatória da transação deveria ser considerada inválida, por falta de legitimidade do seu mandatário para dispor do objeto do processo.
Argumentou que não sabe ler e não sabe escrever e tinha subscrito a procuração com poderes especiais junta aos autos sem conhecer o significado, alcance e efeitos jurídicos de uma procuração com poderes especiais. Só depois da transação ter sido outorgada teve conhecimento de que tinha havido uma desistência do pedido. Não tinha dado instruções para essa outorga nem para a desistência do pedido.
Defendeu ainda que o seu advogado, que outorgou a transação em sua representação, não estava material e objetivamente habilitado a dispor do objeto da transação, tendo o mandato sido exercido sem as suas instruções.
Decisão da Relação do Porto
O TRL julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.
Considerou não existir razão válida para afirmar a existência de vício que atinja a sentença recorrida decorrente da falta de o causídico interveniente na transação não dispor de capacidade ou legitimidade para o ato, nos termos alegados pelo Autor/apelante, dado que o respetivo mandatário, interveniente no ato e subscritor do documento, estava munido com procuração com poderes especiais para o ato, especificamente para desistir do pedido e para transigir.
O recurso de sentença homologatória duma transação apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória e não sobre o mérito da transação homologada, a validade intrínseca do contrato de transação celebrado entre as partes.
Só pode invocar-se a violação, pelo tribunal a quo, dos deveres de controle da legalidade da transação que decorrem do Código do Processo Civil (CPC) o que acontece quando, nomeadamente:
- o objeto do litígio se encontre fora do âmbito da disponibilidade das partes;
- se verifique falta de idoneidade negocial;
- os intervenientes na transação não disponham de capacidade ou legitimidade para o ato;
- o vício possa ser aferido sem necessidade de alegação e/ou prova de factos que não tenham sido invocados até à prolação da sentença homologatória.
A ação anulatória constituirá a forma adequada para impugnar transações nulas ou anuláveis:
- em caso de vícios da vontade e/ou da declaração, ou de vícios quanto ao objeto da transação enquanto negócio jurídico;
- em qualquer outras circunstâncias em que a nulidade ou anulabilidade da transação dependa da alegação e prova de factos novos.
O mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante.
Quando a parte declare na procuração que concede poderes forenses ou para ser representada em qualquer ação, o mandato tem a extensão antes definida, na certeza de que os mandatários judiciais só podem confessar a ação, transigir sobre o seu objeto e desistir do pedido ou da instância quando estejam munidos de procuração que os autorize expressamente a praticar qualquer desses atos.
Ora, o apelante circunscreveu o controle da legalidade à circunstância de o causídico interveniente na transação não dispor de capacidade ou legitimidade para o ato.
Atendendo à audiência de julgamento em que as partes transigiram, da procuração forense assinada pelo autor consta que toda a informação de identificação e do cliente e do advogado e a atribuição a este «dos mais amplos poderes forenses em Direito permitidos e os especiais para confessar, desistir e transigir».
Perante os termos da procuração e na ausência de vício formal da mesma – que nem tinha sido alegado – o TRP concluiu que ela habilitava os causídicos nela indicados a intervir na transação nos moldes em que foi feito. Ou seja, o mandatário o autor dispunha de poderes especiais para «confessar, desistir e transigir».
Da leitura e interpretação desta procuração forense, à luz das regras da interpretação da declaração negocial consagradas no Código Civil, o TRP entendeu que a outorga de poderes para transigir, sem quaisquer restrições expressas ou tácitas, habilita o mandatário a transigir nos termos que considerar adequados. Neste âmbito, e atendendo também ao CPC, conclui-se que essa procuração constitui instrumento bastante para habilitar o mandatário a transigir, sem necessidade de fazer intervir o mandante.
O TRP chama a atenção para o facto de que o mandatário se achava obrigado a executar o mandato forense nos termos em que o mesmo que lhe foi conferido, e, portanto, em consonância com as instruções que recebeu do mandante; e, por outro lado, o Tribunal recorrido não tem de sindicar tal correspondência.
Assim, uma eventual dessintonia entre as instruções recebidas e os termos da transação não constitui fundamento de recurso de apelação da sentença homologatória.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.07.2024
Código do Processo Civil, artigos 290.º, nº 3, 287.º, 289.º, 1161º, al. a)
Código Civil, artigos 236.º a 238.º