O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que deve ser anulado, por usura, o testamento que tenha sido outorgado poucos dias antes da testadora falecer, quando se encontrava numa situação de extrema fragilidade e dependência em relação ao respetivo beneficiário, que dela cuidava profissionalmente, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, sem qualquer ligação afetiva e por iniciativa desse mesmo beneficiário.
O caso
Poucos dias antes de falecer, uma mulher fez um testamento a favor da pessoa que dela cuidava na altura, numa residência, revogando o que tinha feito cerca de 20 anos antes a favor de uma amiga de infância e dos filhos dela. Ao tentar registar o imóvel que ela lhe deixara, o beneficiário do testamento constatou que o mesmo já tinha sido registado a favor dos beneficiários do anterior testamento, facto que o levou a recorrer a tribunal. Este julgou a ação improcedente, anulando o testamento, considerando que o mesmo constituía um negócio usurário. Inconformado, o beneficiário recorreu para o TRL.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida, ao decidir que deve ser anulado, por usura, o testamento que tenha sido outorgado poucos dias antes da testadora falecer, quando se encontrava numa situação de extrema fragilidade e dependência em relação ao respetivo beneficiário, que dela cuidava profissionalmente, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, sem qualquer ligação afetiva e por iniciativa desse mesmo beneficiário.
Diz a lei que é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carater de outrem, obtiver deste, para si, ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados. O negócio usurário pressupõe, assim, uma situação de debilidade ou inferioridade do declarante, a exploração dessa situação por parte do usurário e a obtenção por este de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados.
A aplicação do regime do negócio usurário ao testamento, embora admitida, tem de ser feita com especial cautela, tendo em conta a especificidade desse ato, como negócio jurídico unilateral, e a sua característica de gratuitidade, pela dificuldade que pode existir na concretização e verificação do requisito do negócio que exige a obtenção de um benefício excessivo ou injustificado por parte do respetivo beneficiário, já que, não existindo contrapartida, se poderia dizer que qualquer benefício obtido por via de testamento seria à partida excessivo ou injustificado, não podendo também falar-se de um prejuízo para o testador ou de um desequilíbrio de prestações. Essa aplicação da usura ao testamento funcionará como válvula do sistema, permitindo ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas nos casos em que os tribunais têm de aferir da validade substancial do testamento, por falta de liberdade na formação da vontade, sem que se verifiquem os pressupostos da incapacidade acidental ou da coação moral. É neste contexto que se considera que, não obstante no negócio usurário tenham de estar verificados todos os elementos previstos na lei, quer os subjetivos, relativos ao declarante na verificação das respetivas fragilidades, e ao usurário, na exploração dessa situação de debilidade ou dependência, quer o objetivo, reportado ao negócio, com a concessão ou promessa de benefícios excessivos ou injustificados, o instituto da usura impõe que a situação seja avaliada no seu conjunto, podendo daí resultar, conforme os casos, um diferente peso de cada um dos seus elementos.
Assim, verifica-se uma situação de inferioridade, dependência e fragilidade da testadora quando na data em que o testamento é realizado, treze dias antes de falecer, os seus cuidados de higiene, alimentação e administração de medicamentos eram assegurados pelo beneficiário do mesmo, no âmbito de um contrato de prestação de serviços, estando ela acamada e não conseguindo por si só fazer face e satisfazer as suas necessidades básicas, num estado de fragilidade, dependência e debilidade física e psíquica ainda mais acentuado pela circunstância de não ter qualquer família, mas apenas alguns amigos que por vezes a visitavam.
Verifica-se também uma exploração dessa situação de necessidade, vulnerabilidade e dependência da testadora pelo respetivo beneficiário quando este tinha conhecimento dessa situação e tenha sido ele a contratar os serviços da notária, a escolher as testemunhas que assinaram o testamento, a levar o mesmo previamente redigido e a pagar esses serviços, sem que nada permita afirmar que tenha sido da testadora a iniciativa de fazer esse testamento.
Por último, também se verifica o elemento objetivo da usura, pela obtenção de benefícios excessivos e injustificados por parte do respetivo beneficiário, perante a falta de razões válidas ou justificadas que pudessem ter levado a testadora a outorgar o testamento favor do mesmo treze dias antes de falecer, beneficiando-o com a totalidade dos seus bens, com um valor considerável, sem que entre eles existisse qualquer relação de parentesco ou afinidade, mas apenas um contrato de prestação de serviços pelo qual ele era remunerado, não estando sequer evidenciado que ao longo dos mais de dois anos em que esse contrato foi executado tivessem sido criados entre eles especiais laços afetivos, designadamente de amizade ou cumplicidade, e quando existia um testamento anterior, feito pela falecida cerca de 20 anos antes, em que os beneficiários eram a sua amiga de infância e os filhos dela a quem tratava como família.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 21107/20.2T8LSB.L1-2, de 7 de março de 2024
Código Civil, artigos 282.º e 2179.º