O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que os bens próprios de cada um dos ex-cônjuges, ainda que correspondam a valores em dinheiro, a saldos de depósitos bancários ou a outros ativos de natureza financeira, que estejam na detenção do outro cônjuge, não perdem essa natureza de bens próprios do cônjuge seu titular, para passarem a corresponder a créditos do mesmo sobre o cônjuge detentor.
O caso
Em processo de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal, foi apresentada a relação de bens indicando, na mesma, bens próprios da ex-mulher que estariam na posse do ex-marido.
Bens esses dos quais ele tinha sido constituído depositário, no âmbito de um dos procedimentos cautelares de arrolamento que ela intentara contra ele, tendo ela pedido a entrega, imediata, desses bens e valores, nomeadamente de uma quantia de 1.348.251 euros, pedido ao qual ele se opôs alegando que esse valor correspondia a um mero crédito da cabeça-casal a ser relacionado com tal.
O tribunal resolveu o litígio determinando que essa quantia fosse entregue à cabeça-casal, por não haver dúvidas de que se tratava de bem próprio seu.
Discordando, o ex-marido recorreu desta decisão para o TRL.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL julgou improcedente o recurso, mantendo o despacho recorrido, ao decidir que os bens próprios de cada um dos ex-cônjuges, ainda que correspondam a valores em dinheiro, a saldos de depósitos bancários ou a outros ativos de natureza financeira, que estejam na detenção do outro cônjuge, não perdem essa natureza de bens próprios do cônjuge seu titular, para passarem a corresponder a créditos do mesmo sobre o cônjuge detentor.
Sendo o regime de bens do casamento o da comunhão de adquiridos, a par da existência de um património comum existe, ou pode existir, um património singular de cada um dos cônjuges, integrado por todos aqueles bens que a lei considera como bens próprios. Bens esses que não são só as coisas de que o cônjuge seja proprietário, mas também os direitos reais de qualquer outra natureza e os direitos de crédito, tanto os que tenham por objeto uma prestação pecuniária, como os que incidam sobre prestação de natureza diferente. Ou seja, o acervo de bens próprios de cada um dos cônjuges tanto pode ser integrado por coisas com existência material, como por ativos financeiros ou direitos de crédito sem expressão material, mas tão só documental.
Nessa medida, tratando-se de bens que advieram ao cônjuge depois do casamento, por sucessão ou doação, ou que foram sub-rogados no lugar de bens próprios, ou mesmo o preço de bens próprios alienados, está-se sempre perante bens próprios, ainda que se trate tão só de valores em dinheiro e mesmo que sejam meros saldos de depósitos bancários ou outros ativos de natureza financeira que estejam na detenção do outro cônjuge.
Quanto à partilha, a mesma desdobra-se em três operações distintas. Primeiro, devem ser entregues a cada um dos cônjuges os seus bens próprios. Depois, cada um deles deve conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos, que tenham sido efetuados por esse património, de dívidas da exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor. Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, através da partilha, entregando a cada um dos titulares a respetiva meação.
Assim, estando reconhecida a existência de uma quantia que corresponde a um bem próprio de um ex-cônjuge, e que se encontra na detenção do outro, a primeira operação da partilha em sede de inventário judicial consiste na sua entrega ao ex-cônjuge titular da mesma, não devendo esse bem próprio integrar a relação de bens, uma vez que desta devem constar apenas os bens comuns existentes à data em que cessaram as relações patrimoniais conjugais, após prévia separação dos bens próprios de cada um dos ex-cônjuges.
No caso, correspondendo a quantia de 1.348.251 euros a um bem próprio da cabeça de casal, porque lhe adveio da herança deixada pelo seu pai, a primeira operação da partilha passa pela entrega dessa quantia à cabeça de casal, visto estar na posse do ex-marido. E como a partilha tem de ser efetuada em sede de inventário judicial, é aqui que essa entrega deve ser determinada, como foi decidido no despacho recorrido, sem que seja relacionada na relação de bens, uma vez que se trata de um bem próprio e a relação de bens apenas deve compreender os bens comuns.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 689/20.4T8CSC-B.L1-2, de 4 de abril de 2024
Código Civil, artigos 1689.º n.º 3, 1722.º e 1723.º