O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu que a esposa que requer o arrolamento de bens comuns deve fornecer os elementos de identificação dos bens a arrolar que conheça pelos seus próprios meios, mas a tramitação deste procedimento cautelar permite ao tribunal diligenciar para esse efeito, desde que a requerente justifique a impossibilidade prática de obter essa informação, e as diligências sejam proporcionais e compatíveis com a natureza e a finalidade do procedimento cautelar.
O caso
A mulher instaurou procedimento cautelar de arrolamento de bens comuns contra o marido. Alegou que tinham em comum um património acumulado com o seu trabalho, em Portugal e como emigrantes nos EUA, inteiramente administrado pelo marido, mas nunca tinha tido acesso às contas bancárias do casal nem tinha conhecimento do que constituía ao certo esse património. Desconhecia as matrículas dos veículos comuns na posse do marido e os bancos onde tinham conta.
Na pendência do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, pretendia garantir os bens a que tinha direito com a dissolução do casamento, pelo que solicitou que fosse decretado o arrolamento de diversos bens comuns que indicou: viaturas registada em nome do marido, participações sociais de que o mesmo fosse titular, saldos dos depósitos à ordem, a prazo, títulos, obrigações, ações, PPR, contas poupanças, fundos de investimento, seguros financeiros, etc., tituladas pelo requerido, como 1º titular e/ou 2º titular, em qualquer instituição bancária a operar em Portugal.
O tribunal indeferiu liminarmente o pedido por entender que a requerente não identificava minimamente os bens nem concretizava os bens ou direitos em causa. Além disso, pedia que sejam arrolados saldos e produtos financeiros de que o marido fosse titular ou co-titular em qualquer instituição bancária a operar em Portugal, o que pressuporia que o tribunal oficiasse a uma dessas instituições.
A requerente interpôs recurso de apelação.
Decisão da Relação do Porto
O TRP julgou o recurso procedente e revogam a decisão da 1ª instância, determinando a admissão liminar do arrolamento pedido.
Trata-se do exercício do direito processual de requerer o arrolamento para acautelar o direito material do requerente sobre os bens.
Se é verdade que no procedimento cautelar de arrolamento como incidente da ação de divórcio, o requerimento inicial deve conter a identificação discriminada dos bens comuns a arrolar, sob pena de indeferimento liminar, também é verdade que o requerente pode requerer a colaboração do tribunal para obter informações que permitem apurar os bens comuns que existem e onde se encontram, e, neste caso, o que deve alegar para que o tribunal defira tal requerimento.
Para o TRP o requerimento deve conter a indicação dos bens a arrolar, mas há situações em que essa indicação pode ser dispensada, cabendo no âmbito do procedimento cautelar a realização de diligências que permitam a obtenção dos elementos indispensáveis para a concretização do arrolamento.
O tribunal de 1ª instância poderia ter optado pelo aperfeiçoamento do articulado; o que não podia, sob pena de incorrer em nulidade, era indeferir liminarmente o requerimento com fundamento em que este é insuficiente, sem previamente convidar a requerente a aperfeiçoar o requerimento inicial, uma vez que se trata de uma insuficiência perfeitamente sanável.
Na realidade, existe ali um conteúdo, ainda que imperfeitamente cumprido, já que estavam indicados bens, embora não identificados de forma especificada.
Para o TRP, é evidente a necessidade de indicação dos bens pela requerente, já que pretende poder fazer prova sumária do seu direito relativo a esses bens. Isso não significa que tenha obrigatoriamente de os especificar, fornecendo logo a totalidade dos elementos de identificação, nomeadamente a matrícula e marca de veículos, banco e IBAN de conta bancária, descrições prediais e inscrições matriciais de imóveis, ou autor, o título e o ano de produção de uma pintura.
O requerente pode saber que existem bens sobre os quais tem o direito que permite requerer o seu arrolamento, mas não ter condições para os identificar de forma especificada, desde logo porque não tenha acesso a esses elementos ou porque estão em poder de terceiro sob sigilo.
Essa dificuldade não deve ser impeditiva do exercício do direito processual de requerer o arrolamento para acautelar o direito material do requerente sobre os bens.
O Código de Processo Civil estabelece que no requerimento executivo, o exequente deve indicar sempre que possível o empregador do executado, as contas bancárias de que este seja titular e os bens que lhe pertençam, de entre outras informações. E fornecer a identificação desses bens conforme a ela tenha acesso. Mas tal não exclui que o requerente possa justificar a impossibilidade prática (não absoluta) de fornecer os elementos de especificação e identificação dos bens e requerer a colaboração do tribunal para os obter com vista à concretização da providência.
Estes deveres do tribunal têm, evidentemente, de se guiar e reger por critérios de adequação e proporcionalidade. Cabe algo, mas não cabe tudo.
O procedimento cautelar não pode ser convertido num procedimento de investigação judicial da situação patrimonial do requerido, guiado apenas pela suspeita do requerente de que podem existir outros bens comuns igualmente passíveis de serem arrolados.
Por isso, em regra, o que pode ser pedido ao tribunal é apenas que oficie aos serviços ou entidades nos quais possa haver registo de bens presumivelmente comuns, de modo a obter informação puramente documental a que o requerente tenha o direito de ter acesso (v.g. mediante a quebra ou dispensa do dever de sigilo que recaia sobre essa informação).
Nada obsta que o tribunal, avaliando a extensão dos bens que ainda é necessário apurar e identificar e a justificação dada para a necessidade das diligências, as realize mesmo antes de decidir, no decurso da instrução do procedimento, e sobre elas confronte a requerente para que esta requeira de forma especificada o seu arrolamento, justificando que se trata de facto dos bens que tinha em mente ao requerer o arrolamento dada a sua natureza comum.
No caso, o TRP considera que é de presumir que haja bens comuns do casal por isso corresponder às regras da experiência e que o desconhecimento do património comum pela mulher é possível e verosímil. É suficiente para justificar a impossibilidade prática da requerente de identificar os bens e consentir que ela solicite a intervenção do tribunal para que oficie ao Banco de Portugal (depois ver-se-á se se colocam e como decidir as questões atinentes ao dever de sigilo), ao Registo Automóvel e ao Registo Comercial solicitando as informações necessárias para o efeito que seja possível obter com os elementos de identificação do requerido.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.04.2024
Código de Processo Civil, artigos 409.º, 590.º, 391.º, 724.º, 748.º, 749.º