O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os negócios onerosos feitos por autora da sucessão não podem ser impugnados, em vida dela, pelas suas herdeiras legitimárias, a não ser com base na nulidade decorrente de simulação, nas condições previstas no Código Civil para invocação de nulidade pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar. Ou seja, se tiverem sido celebrados com o intuito de as prejudicar. Não se provando os requisitos da simulação, nomeadamente a divergência intencional entre as declarações negociais e a vontade real dos outorgantes, não assiste aos herdeiros legitimários direito a obter a nulidade dos negócios celebrados em vida pela autora da sucessão.
O caso
Uma mulher intentou ação contra a sua mãe (por ser na qualidade de Herdeira Universal de sua irmã) e tias (irmãs da mãe) pedindo que fosse declarada a nulidade da escritura de permuta e doação outorgada em 20 de março de 2002, por estar ferida do vício de fraude à lei, de simulação absoluta ou de simulação relativa e o cancelamento dos registos efetuados com base em tal instrumento notarial. Alegou que as partes não quiseram permutar os imóveis.
Em março de 1986, a tia outorgou um testamento; não tendo herdeiros legitimários, deixou às sobrinhas, filhas de sua irmã, a propriedade de todos os imóveis que integram a sua herança, com exceção de prédios rústicos, ou urbanos, e terrenos para construção. O usufruto dos imóveis deixados às sobrinhas ficaria para sua irmã, que seria herdeira do remanescente dos seus bens e direitos que integrassem a herança. O único bem que legou às sobrinhas através da deixa testamentária foi um prédio urbano composto por dois edifícios:
- rés-do-chão com casa de porteira, loja e garagem e de 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º andares (artigo matricial 34) com o valor patrimonial de € 845.010,00;
- cave, rés-do-chão com uma loja e de 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º andares (artigo matricial 40) com o valor patrimonial de € 2.309.640,00.
Em março de 2002, as duas irmãs celebraram uma escritura pública de permuta e doação, na qual declararam proceder à permuta entre o prédio urbano (Prédio 2) que era propriedade de uma, pelo prédio urbano (Prédio 1A e B), que era propriedade da outra. Acordaram em valor equivalente dos prédios. Na mesma escritura pública de permuta e doação, fez-se doação às quatro sobrinhas.
Em dezembro de 2000 a falecida outorga novo testamento, no qual instituiu vários legados, e institui como herdeira do remanescente dos seus bens a sua irmã. Esta outorgou a escritura por si e na qualidade de procuradora das suas filhas, declarando aceitar a doação. A falecida ainda veio a outorgar um terceiro testamento, em junho de 2005, no qual revogar o testamento de 2000 e mantém todas as suas outras disposições anteriores de última vontade, constantes do testamento de 1986.
As rés (a mãe e as primas) contestaram. A sentença em primeira instância julgou a ação improcedente e absolveu as rés do pedido.
A autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou a ação procedente maio de 2023 e declarou a nulidade da escritura de permuta e doação.
Decisão do Supremo Tribunal de Justiça
O STJ decidiu que os negócios são válidos, tal como decidido em primeira instância, pelo que a autora não tem legitimidade para arguir a sua nulidade ao abrigo do Código Civil.
A sentença da primeira instância tinha considerado não se registar qualquer divergência entre as declarações negociais e a vontade real das outorgantes. Agora o STJ julgou a revista interposta pelas rés procedente, e revogou o acórdão do TRL, repristinando a sentença da primeira instância.
Para o STJ, do elenco dos factos apurados na Relação não se extrai que tenha havido qualquer divergência entre as declarações negociais emitidas pelas outorgantes nos contratos ajuizados e a sua vontade real e que tal divergência tenha resultado de acordo entre as outorgantes com o intuito de enganar alguém.
Ao contrário do que defendeu a autora, as partes outorgantes quiseram celebrar os contratos.
Tanto a sua mãe como a falecida tia celebraram os contratos que queriam celebrar: a permuta dos imóveis de que eram proprietárias e a posterior doação dos imóveis que eram propriedade da primeira a duas das quatro filhas da mãe da autora.
O acordo das partes teve em vista exatamente proporcionar, a conselho de um advogado, a transferência dos imóveis da mãe da autora para a esfera patrimonial da falecida sua irmã a fim de esta os poder doar às filhas (sobrinhas da sua irmã) que era, ao menos aparentemente, a finalidade visada pelas partes outorgantes.
A nulidade, por simulação, dos contratos de permuta e doação ajuizados está condicionada à prova do engano de terceiros sobre a realidade da declaração negocial emitida pelas partes outorgantes e a vontade de celebração dos contratos com todos os seus efeitos (artigo do Código Civil).
Além disso, no caso da invocação da nulidade da simulação por herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele realizados, a prova do requisito adicional que a simulação foi feita com o intuito de os prejudicar.
No caso dos autos, não ficando demonstrada a divergência entre a declaração negocial e a vontade real das partes suscetível de gerar, por simulação absoluta, a nulidade dos contratos, não pode igualmente afirmar-se, através da sua análise, que os contratos ajuizados tenham sido realizados com intuito de prejudicar os herdeiros legitimários da mãe da autora através da celebração de negócio diferente dos efetivamente queridos e acordados pelas partes.
A alegada celebração do contrato de doação dos imóveis às suas filhas através da falecida irmã/tia teve, afinal como contrapartida a transferência para o seu património de um outro imóvel, ainda que de valor inferior. No entender do STJ, a avaliação das consequências prejudiciais dos negócios ajuizados sobre a legítima da autora só pode ter lugar no momento da abertura da sucessão. Não ocorrendo simulação, absoluta ou relativa, os negócios ajuizados são válidos, tal como decidido em primeira instância, a autora carece de legitimidade para arguir a sua nulidade.
O negócio celebrado em fraude à lei caracteriza-se pela instrumentalização de negócio formalmente lícito para conseguir um resultado ilícito em razão da sua equivalência material a um resultado não autorizado pela lei. Se o resultado representar ofensa de normas de carácter imperativo, é nulo.
Mas não constitui fraude à lei por ofensa da legítima a celebração conjunta de um contrato de permuta e de um contrato de doação cujo resultado global final seja a transferência do direito de propriedade, por doação, de dois imóveis a duas das quatro filhas da futura autora da sucessão.
Só é possível aferir da violação das normas imperativas sobre a sucessão legitimária, após a abertura da sucessão.
Os negócios onerosos feitos pela autora da sucessão não podem ser impugnados, em vida dela, pelas suas herdeiras legitimárias senão com base na nulidade decorrente de simulação, nas condições previstas no Código Civil para invocação de nulidade pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar. Ou seja, se tiverem sido celebrados com o intuito de as prejudicar.
Não se provando os requisitos da simulação, nomeadamente a divergência intencional entre as declarações negociais e a vontade real dos outorgantes, não assiste aos herdeiros legitimários direito a obter a nulidade dos negócios celebrados em vida pela autora da sucessão.
O STJ manteve o elenco dos factos fixados no acórdão do TRL, com fundamento expresso na confissão da ré BB e na sua força probatória plena contra a confitente e a simples alusão à natureza confessória das suas declarações, acaba por redundar em erro na apreciação das provas em sentido estrito.
Por outro lado, refere o STJ, inexiste disposição legal expressa que exija a confissão como meio de prova permitido para a afirmação da intenção que esteve subjacente à decisão de realizar a permuta de bens imóveis. Daí que seja aplicável ao caso a regra do Código de Processo Civil de acordo com a qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos matérias da causa não pode ser objeto do recurso de revista.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.05.2024
Código Civil, artigos 240.º n.º 1, 242.º n.º 2
Código do Processo Civil, artigo 463º