O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que as relações patrimoniais entre os cônjuges, decorrentes do regime de bens do casamento, cessam na data da sentença estrangeira que decretou o divórcio e não apenas na data da decisão que a revê e confirma em Portugal. Neste caso, um divórcio ocorrido na Suíça em 1990, mas apenas reconhecido em Portugal em 2016, impedia que o imóvel comprado pela autora em 1999 fosse declarado seu bem próprio, situação alterada pelo TRL uma vez que os efeitos da sentença estrangeira retroagem ao momento da sua produção na ordem jurídica do Estado de origem.
O caso
Uma mulher intentou uma ação contra o ex-marido, para que fosse declarada única proprietária de uma fração autónoma, cancelando-se o registo da propriedade na parte relativa ao réu, mais 9.000 € pelos prejuízos causados pelo facto de aquele não reconhecer voluntariamente a exclusiva propriedade da autora.
Apesar da inscrição a favor dos dois, a propriedade seria apenas dela. Quando tinha adquirido o imóvel já era divorciada do réu, embora a sentença de divórcio, proferida na Suíça em 1990, só tenha sido objeto de revisão por sentença da Relação de Lisboa proferida em 2016, anos após a compra. Tinha, aliás, sido o Banco que financiou o crédito habitação a exigir a assinatura do então ainda seu marido, tendo o homem anuído. Contudo, ele não tinha comprado a casa nem contribuído para o seu pagamento ou despesas relacionadas com a fração.
A mulher entendeu que o registo da fração nos termos em que estava, seria inválido.
O tribunal decidiu julgar a ação improcedente, com base na inexistência de prova documental que revelasse qualquer espécie de pagamento relacionado com a fração.
Inconformada, a mulher interpôs recurso, por entender que o tribunal tinha feito prevalecer a formalidade da escritura sobre a justiça material, com evidente prejuízo para ela, que quis comprar, recorreu a crédito e suportou sozinha os custos.
O imóvel escriturado em 1999 deveria ser considerado seu bem próprio.
Decisão da Relação de Lisboa
O TRL julgou parcialmente procedente o recurso, dando razão à autora no que respeita à propriedade do imóvel. Declarou-a legítima dona e a única proprietária da fração e condenou o réu a reconhecer esse direito exclusivo de propriedade.
Para o TRL não há dúvidas de que as relações patrimoniais do primitivo casal, decorrentes do regime de bens do casamento, cessaram na data da sentença estrangeira que decretou o divórcio e não aquando da sua revisão e confirmação em Portugal, ocorrida somente em 2016.
A autora e o réu tinham sido casados com comunhão de adquiridos. O imóvel foi objeto da escritura pública outorgada a 26.05.1999, após divórcio. Reportando-se a compra do imóvel a 26.05.1999 e tendo as relações patrimoniais decorrentes do casamento cessado no dia 15.01.1990, o imóvel é bem próprio da autora.
No ordem jurídica portuguesa vigora o regime da mera revisão formal (verificação da regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo), conhecido por sistema da delibação, em que a sentença de confirmação opera a receção na ordem jurídica do foro dos efeitos que a decisão estrangeira produz na ordem jurídica do Estado de origem e, geralmente, confere-lhe força executiva.
O tribunal de reconhecimento nunca se substitui ao tribunal de origem; é a sentença estrangeira que é executada, mas a sentença de confirmação que lhe atribui relevância na ordem jurídica interna não pode deixar de integrar o título. Por outro lado, a confirmação da decisão estrangeira tem efeito retroativo com ressalva dos direitos de terceiro.
Ou seja, os efeitos que a sentença estrangeira produz na ordem jurídica interna retroagem ao momento da sua produção na ordem jurídica do Estado de origem; não adquire o efeito de caso julgado na nossa ordem jurídica depois da sua confirmação.
O TRL salienta que qualquer contributo patrimonial do réu para a compra do imóvel nunca teria influência nessa conclusão, podendo apenas conferir-lhe um direito de crédito sobre a autora.
Assim, deve ordenar-se o cancelamento da inscrição de aquisição por compra na parte em que a mesma respeita à titularidade do réu ou o seu cancelamento e a subsequente reinscrição da referida aquisição exclusivamente em nome da autora.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.04.2024
Código do Processo Civil, artigo 411º
Código de Registo Predial, artigo 7ª