O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que a sonegação de certificados de aforro que integravam a herança da falecida origina responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, e há mora desde o resgate ilícito dos certificados que a herdeira fez seus, independentemente de interpelação do devedor. Aquela sonegação é o facto gerador da obrigação de indemnizar e é a partir dela que são devidos os juros de mora. Tendo sido a falecida a autora do ilícito, a obrigação acessória relativa aos juros de mora corresponde a uma dívida da responsabilidade da herança.
O caso
Os irmãos e sobrinhos de MO intentaram contra esta uma ação, pedindo que fosse condenada a restituir à herança dos €139.348,01 resultantes do resgate de certificados de aforro. Pediram ainda que fosse declarada a perda do direito ao respetivo quinhão da MO relativamente àquele montante, a favor dos autores e da herança da MG. Todos eram herdeiros de MG. MO, MG e MB eram irmãs.
MG era, à data da sua morte, era titular de uma conta aforro. A 07/11/2017, MB, utilizou a sua qualidade de movimentadora dos certificados de aforro e procedeu ao resgate de todos os certificados da pré falecida irmã, no valor de €139.348,01. Teria omitindo intencionalmente ao IGCP a morte da irmã e transferido o montante do resgate para a sua conta bancária.
Durante o processo MO faleceu e foi deduzido incidente de habilitação de herdeiros e, a 02/03/2021, foi habilitado AR na qualidade de herdeiro da MO. Foi este quem contestou a ação. Defendeu que aquela violação não lhe poderia ser imputável, por ter sido devida a culpa exclusiva da falecida MB.
A sentença decidiu que os certificados de aforro integravam o acervo hereditário de MG; decretou a sonegação pela herdeira MB dos certificados de aforro e determinou a perda em benefício de todos os restantes co-herdeiros do direito aos €139.348,01 do resgate. Condenou ainda o réu, na qualidade de único e universal herdeiro da primitiva ré, que por sua vez era única e universal herdeira de MB, a restituir de imediato à herança de MG a referida quantia acrescida de juros de mora desde a data do resgate.
O tribunal decidiu que eram devidos juros de mora desde a data da apropriação dos certificados de aforro e salientou que o recorrente habilitado não estava a ser demandado a título pessoal, mas apenas enquanto herdeiro universal da primitiva ré, que por sua vez tinha sido demandada enquanto herdeira universal da MB.
O réu habilitado não se conformou; recorreu e pediu a sua absolvição quanto à condenação no pagamento de juros moratórios à taxa de 4% ano sobre o valor dos certificados de aforro.
Decisão da Relação de Lisboa
O TRL confirmou a sentença da 1ª instância. Considerou, pois, serem devidos, para além do capital sonegado, os juros de mora à taxa legal de 4% desde a data do resgate dos certificados de aforro. E condenou o recorrente, na qualidade de único e universal herdeiro da falecida, primitiva ré, por seu turno única a universal herdeira da MB, a restituir à herança da MG a quantia de € 139.348,01 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data do resgate dos certificados de aforro.
O evento gerador da obrigação de indemnizar corresponde à sonegação dos certificados de aforro que integravam a herança da falecida MG, pela MB, nos termos do Código Civil, o que situa a responsabilidade civil desta no âmbito da responsabilidade extracontratual pela prática de um facto ilícito.
Assim, os juros de mora vencem-se a partir da ocorrência daquele facto constitutivo da obrigação, de acordo com o Código Civil, independentemente de interpelação.
O TRL dá razão ao recorrente quando este refere que não se apurou outra culpa que não a da MB, ao resgatar ilicitamente os certificados de aforro da irmã; não se tinha apurado que, quer a herdeira daquela aqui primitiva ré, quer o recorrente o soubessem.
Contudo, o TRL esclarece que que nem ele, nem tão pouco a primitiva ré estão a ser demandados em nome próprio, mas apenas enquanto sucessores daquela autora do ilícito.
Ora, tendo a MB incorrido na prática de facto ilícito, a sua principal dívida ou obrigação reconhecida na sentença - de restituir os certificados de aforro que sonegou da herança da MG, bem como a obrigação acessória relativa aos juros de mora - corresponde a uma dívida da responsabilidade da sua herança, nos termos do Código Civil.
A primitiva ré (MB) foi chamada à ação enquanto única herdeira daquela, sendo naturalmente a sua responsabilidade perante os autores, limitada às forças da herança que recebeu, conforme expressamente previsto no Código Civil. Aconteceu exatamente o mesmo com o recorrente, enquanto único herdeiro da primitiva ré e com a mesma limitação.
Isso mesmo foi salvaguardado pela sentença da 1ª instância.
Tanto o réu habilitado como a primitiva ré estão a ser demandados apenas enquanto sucessores e únicos herdeiros, respetivamente da primitiva ré e da autora do ilícito. Portanto, constituindo o crédito dos autores uma dívida da herança desta, estão obrigados a satisfazê-la nos mesmos termos que a primitiva obrigada a quem sucedem, ainda que a sua responsabilidade seja circunscrita aos bens da sua herança.
Concluiu o TRL que a obrigação se venceu na data da prática do ilícito, pelo que é a partir dessa data que são devidos os juros de mora, não havendo necessidade de qualquer interpelação para a constituição em mora, contrariamente ao que tinha defendido o recorrente.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.04.2024
Código Civil, artigos 804.º, 805.º, 806.º, 2071.º, 2096.º