O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que um testamento hológrafo redigido por uma portuguesa na Suíça, onde viveu 30 anos, sendo inválido em Portugal por não ter intervenção pública, é válido pela lei suíça como lei do domicílio habitual da testadora e deve ser reconhecido em Portugal verificados os requisitos exigidos pelo Código Civil para conferir uma relevância indireta à conexão.
O caso
Uma cidadã portuguesa C faleceu solteira na Suíça, onde viveu durante 30 anos. Durante mais de 10 anos, viveu com B em condições análogas às dos cônjuges. Deixou como herdeiros o irmão A e a sobrinha. O seu irmão intentou ação para declaração de nulidade do testamento.
O documento de autoria atribuída à falecida, redigido em dezembro de 2013 em alemão, com intervenção de duas testemunhas, configura uma disposição de última vontade, pelo qual tinha instituído como seu único e universal herdeiro B, também seu testamenteiro. No âmbito do processo sucessório foi emitido a 16/03/2016 certificado sucessório a favor de B e este liquidou os correspondentes impostos e encargos.
O irmão defendeu que os testamentos feitos por portugueses no estrangeiro só produzem efeitos se tiver sido observada a forma solene na sua feitura ou aprovação. O testamento da irmã seria inválido na ordem jurídica portuguesa por não revestir as exigências de forma impostas quer pela lei nacional quer as impostas pelo instrumento de direito internacional pelo qual se devem reger os testamentos de cidadãos nacionais residentes no estrangeiro.
O réu B contestou e defendeu a aplicação da lei suíça, onde decorreu o processo sucessório, no âmbito do qual foi considerado o legitimo herdeiro da falecida, beneficiário de todos os seus bens e responsável pelo pagamento de todos os impostos e encargos devidos pela sucessão e pelo processo.
O tribunal julgou a ação procedente e declarou a nulidade do testamento. B recorreu e o Tribunal da Relação de Coimbra deu-lhe razão.
A seguir, o irmão da falecida recorreu para o STJ, questionando a interpretação da lei a aplicar quanto à validade do testamento e alegou que a aplicação da Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma de Um Testamento Internacional, segundo a qual o testamento, para ser válido, deveria ter em Portugal a intervenção de uma entidade dotada de fé pública e mencionar a identificação das testemunhas e ser assinado pelas mesmas, já que o testamento holográfico não é permitido em Portugal.
Decisão do Supremo Tribunal de Justiça
O STJ negou provimento à revista e confirmou o acórdão recorrido. Decidiu que o caso preenche as condições exigidas para a aplicação subsidiária da lei suíça, ao abrigo da determinação da lei pessoal do Código Civil e, consequentemente, o testamento de C pode e deve ser reconhecido em Portugal.
Ou seja, são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.
A norma relativa à forma da sucessão continua a ter aplicação quando não ocorram as circunstâncias impostas pela norma de reconhecimentos referida acima, caso em que já não se pode dizer que existem expectativas dignas de tutela jurídica ou que justifiquem o desvio à regra da nacionalidade do indivíduo como lei pessoal.
O artigo relativo à forma da sucessão consagra uma solução de grande flexibilidade, tributária do favor negotii/favor testamenti, através da “técnica da conexão múltipla alternativa”. Pela técnica da conexão múltipla alternativa o ato é válido desde que observe a forma da lei do lugar onde o ato é praticado, a lei pessoal do testador no momento da declaração, a lei pessoal do testador no momento da morte ou a lei remetida pela norma de conflitos da lei local.
Contudo, esta regra sofre uma restrição segundo a qual, não pode esta forma deixar de ser observada quando a lei pessoal do testador exija, no momento da declaração, sob pena de invalidade/ineficácia, determinada forma, ainda que o ato seja praticado no estrangeiro.
Quando a lei pessoal do testador exija determinada forma, esta tem de ser observada, ainda que o ato seja praticado no estrangeiro. Trata-se de salvaguardar formalidades intrínsecas ao ato testamento, que, compreensivelmente, não podem ser preteridas ainda que o ato seja praticado no estrangeiro.
O testamento de C é um testamento hológrafo, ou seja, integralmente escrito e assinado pelo testador, o que levanta questões de validade já que a lei portuguesa não considera estas documentos válidos.
O STJ salienta que, no domínio do estatuto pessoal, há duas conexões igualmente significativas e internacionalmente legítimas: a da nacionalidade e a do domicílio (residência habitual).
Face à necessidade inadiável de optar por uma delas, para efeito da resolução dos conflitos, o legislador nacional optou pela primeira. Assim, a conexão da residência habitual, apesar de igualmente importante e legítima, foi deixada na sombra, apenas lhe sendo conferida relevância a título subsidiário em várias disposições do Código Civil. Mas, o facto de, para efeito das regras de conflitos, se ter de optar por uma das conexões, não significa que as outras, como ligações que são entre os factos a regular e a esfera de eficácia das leis interessadas e suscetíveis de juridicamente os «impregnarem», ficam destituídas de toda a relevância. Muito menos será assim quando a conexão preterida é uma conexão tão importante quanto a da residência habitual.
Mesmo nos casos em que não é possível reconhecer a esta conexão uma relevância direta, dada a preferência pela nacionalidade, pode conferir-se uma relevância indireta – no plano das situações a reconhecer no Estado do foro, reconhecendo validade aos atos e negócios jurídicos do estatuto pessoal que tenham sido validamente celebrados à sombra da lex domicilii, quando esta se repute competente.
O STJ conclui que o legislador português, no plano das situações já constituídas a reconhecer, permite que, em certas circunstâncias (pelo menos se o ato ou negócio foi celebrado no Estado do domicílio), a conexão «residência habitual» funcione alternativamente com a conexão «nacionalidade»: o negócio será reconhecido por válido desde que seja conforme, quer à lei da nacionalidade, quer à lei da residência habitual.
No caso dos autos todos os requisitos do reconhecimento se verificam:
- o país da celebração do negócio jurídico unilateral (Suíça) é o país de residência habitual da testadora;
- a celebração do negócio é conforme à lei suíça. O testamento é hológrafo, escrito, datado e assinado por C, o que na Suíça corresponde a uma maneira válida de fazer um testamento;
- a lei suíça considera-se competente.
Em conclusão, o caso preenche as condições exigidas para a aplicação subsidiária da lei suíça e o testamento de C pode e deve ser reconhecido em Portugal.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.05.2024
Código Civil, artigos 31.º, 62.º, 65.º
Código Civil Suíço, artigo 505º