O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, tenha atentado contra a vida do pai e da irmã e depois reclame, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único.
O caso
Um homem foi absolvido depois de ter esfaqueado mortalmente o seu pai e a sua irmã, na altura grávida, apenas por ser inimputável devido a doença psiquiátrica irreversível, no caso esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides.
Posteriormente, os irmãos do falecido, tios do arguido, recorreram a tribunal pedindo para que fosse declarada a indignidade sucessória do mesmo. O arguido defendeu-se face à sua absolvição, mas o tribunal decidiu declarar a sua incapacidade sucessória na herança aberta por óbito do seu pai, decisão da qual recorreu para o Tribunal da Relação e, depois, para o STJ.
Apreciação do Supremo Tribunal de Justiça
O STJ negou provimento ao recurso, ao decidir que atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, tenha atentado contra a vida do pai e da irmã e depois reclame, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único.
Diz a lei que carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado; o condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza; o que por meio de dolo ou coação induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu; e o que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos.
Todavia, o legislador, exigindo uma sentença de condenação, não regulou os casos de absolvição, por ausência de capacidade de culpa jurídico-criminal do agente, acompanhada da sujeição do réu a uma medida de segurança. Essa lacuna legislativa deve ser ultrapassa através do recurso à figura do abuso do direito, visto ser desajustada a aplicação analógica, uma vez que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso.
Ora, o exercício do direito a herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si causada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal.
Admitir esta possibilidade seria contrariar o princípio normativo e constitucional da tutela absoluta do direito à vida, que constitui também um princípio de ordem pública.
Assim, embora no caso o arguido tenha sido absolvido, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, e a lei apenas consagre a indignidade sucessória para os casos de condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso, o recurso à figura do abuso do direito permite afastar a sucessão.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 2150/22.3T8TVD.L1.S1, de 9 de julho de 2024
Código Civil, artigos 10.º, 334.º e 2034.º
Constituição da República Portuguesa, artigo 24.º