O Tribunal da Relação de Évora (TRE) decidiu que, na pendência de processo de inventário subsequente a divórcio, o Banco de Portugal deve informar sobre contas, saldos e entidades bancárias, cedendo o segredo legal, desde que se apure que a informação pretendida é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida.
Foi o que aconteceu neste caso, em que estava em discussão a sonegação de bens por parte do réu do património do casal.
O caso
No âmbito da uma ação de condenação pedia-se que o réu fosse condenado a reconhecer como integrantes do património comum do casal diversos seguros poupança/capitalização, PPRs e apólices de seguro do ramo vida no valor de 700 mil euros, bem como a perder direitos sobre vários prédios em benefício da autora.
Encontrava-se pendente processo de inventário subsequente a divórcio, no qual as partes foram remetidas para os meios comuns quanto à reclamação apresentada pela autora relativa à falta da relação dos depósitos a prazo e à ordem, títulos de investimento mobiliário e diversos seguros do ramo poupança / capitalização e poupança / reforma.
O réu tinha invocando a realização de investimentos ruinosos pelo que não existiriam certos bens ou direitos a integrar o património comum do casal.
Foi dirigido pedido de informação ao Banco de Portugal (BdP) para identificação de contas e produtos financeiros da titularidade do réu, mas a instituição invocou o dever legal de segredo e recusou prestar a informação solicitada, por não ter sido dado o consentimento do respetivo titular.
O despacho do tribunal considerou a recusa do BdP legítima e suscitou incidente de quebra do sigilo bancário perante o Tribunal da Relação.
Decisão da Relação de Évora
O TRE julgou o incidente procedente e deferiu o levantamento do dever de segredo do BdP.
No âmbito deste processo pretende-se que BdP identifique as entidades bancárias onde as partes eram titulares de contas bancárias, à ordem ou a prazo, e de outras aplicações financeiras e respetivos saldos, uma questão que apenas se suscitou relativamente a contas e/ou aplicações financeiras na titularidade do réu.
Ou seja, que apenas relativamente a este está afirmado não ter sido dado consentimento para divulgação dessas informações.
Neste enquadramento, o TRE entendeu que a informação bancária pretendida relativamente ao réu é determinante para apreciar a viabilidade da pretensão esgrimida nesta ação pela autora.
O dever de cooperação para a descoberta da verdade tem como limite (para além do respeito pelos direitos fundamentais enquanto limite absoluto imposto constitucionalmente), o acatamento do dever de sigilo. O juiz não pode, pelo menos em absoluto, ao abrigo do dever de cooperação, provocar, por via da requisição de alguma informação, a violação pela entidade requisitada do segredo profissional a que a mesma se encontre legalmente vinculada.
Por via do dever do sigilo protege-se os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes.
No caso em apreço, está em causa o dever de segredo das instituições de crédito: sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. Porém, os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
Em face da legitimidade da escusa deduzida, o TRE apreciou se esse dever deveria ou não ceder face ao outro interesse conflituante, o interesse da efetiva realização dos fins da atividade judicial.
O segredo bancário deriva, nomeadamente, da existência da relação jurídica bancária, de base contratual, constituída mediante a celebração do contrato de abertura de conta, no âmbito do qual está garantido o direito do cliente ao sigilo e o correspondente dever para a instituição, o que sempre se imporia como dever acessório, imposto pela boa-fé
Mas o direito do cliente ao sigilo não é um direito absoluto; pode ceder perante outros direitos.
A jurisprudência que vem sendo afirmada nesta matéria assenta nos seguintes vetores:
- o interesse da «boa administração da justiça» prevalece sobre o interesse da «proteção da posição do consumidor de serviços financeiros» ou mesmo da manutenção do clima de confiança na banca;
- quando a informação solicitada ao banco é necessária e adequada para que o interesse público da realização da justiça se sobreponha claramente ao interesse privado, verificam-se os requisitos legais para a quebra do sigilo bancário;
- justifica-se a medida excecional da quebra do segredo bancário, por prevalência do interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material, quando a prova dos factos, sem tal quebra, possa ficar seriamente comprometida e com isso, eventualmente, a justa decisão da causa;
- existindo a necessidade de verificar os movimentos bancários realizados pelas partes na gestão da empresa a partilhar entre os cônjuges – como elemento de prova idóneo a desvendar essa situação – deve levantar-se o sigilo bancário a que a instituição financeira, à partida, estaria obrigada;
- a prevalência do interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio; na ponderação dos interesses em confronto, há que averiguar se a informação pretendida é necessária – tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas da prova, bem como o ónus e regras de prova – ou imprescindível – no sentido de não poder ser obtida de outro modo;
- esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita.
O BdP teria portanto de prestar as informações solicitadas pela 1.ª Instância no sentido de apurar a identificação das entidades bancárias onde o réu era titular de contas bancárias, à ordem ou a prazo, e de outras aplicações financeiras e respetivos saldos, existentes à data de 05/03/2003.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06.06.2024
Código do Processo Civil, artigo 417.º n.º 3 alínea c)
Código do Processo Penal, artigo 135.º
Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, artigos 78.º e 79.º