O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que a vontade unilateral do pai devedor, de que os menores passem a frequentar um estabelecimento de ensino público e não um colégio privado, não é apta a justificar a sua falta de pagamento da comparticipação que tem nessas despesas.
O incidente de incumprimento, previsto no Regime Geral do Processo Tutelar Cível, não serve para alterar a regulação do exercício das responsabilidades parentais nem sequer para resolver diferendos sobre questões de particular importância.
Serve sim para reconhecimento da falta de cumprimento das obrigações emergentes do regime que vigorar e determinar as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do devedor em multa (se for requerido).
O caso
Uma mãe, diretora de marketing numa empresa, deduziu, a 10/3/2020, contra o ex-marido, diretor de operações noutra empresa, incidente de incumprimento das responsabilidades parentais relativas aos seus dois filhos, pedindo a sua condenação a pagar imediatamente € 3.186,02 relativos à comparticipação não paga em despesas de educação e saúde com os menores. Pediu ainda que fosse ordenado à entidade patronal do requerido que retivesse € 3.186,02, para garantia do pagamento.
Alegou violação, desde outubro de 2019, do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais que obrigava o ex-marido a pagar metade das despesas de educação e saúde com os menores; estaria em falta o pagamento de € 2.651,38 de propinas do colégio e outras atividades educacionais, mais € 534,64 de despesas de saúde.
O requerido contestou os valores, invocando que a ex-mulher lhe devia mais de € 35.000 a título de despesas comuns e com os menores, e que não tinha condições para fazer face a todas as despesas sozinho. A 13/11/2020 apresentou requerimento a alegar a sua incapacidade financeira na circunstância de a ex-mulher manter a sua intransigência quanto ao acerto de contas. Não poderia suportar as despesas no colégio privado, nem na proporção de 50%. No contraditório, a requerida não concordou. A 2/2/2021 o requerido pronunciou-se novamente sobre a sua situações económica; referiu que a mãe dos filhos os tinha inscrito no ano letivo de 2020/21 por sua própria iniciativa e sem o seu consentimento do requerido, pelo que seria a única responsável pelo pagamento das propinas, já que tinha violado o acordado quanto ao exercício das responsabilidades parentais.
A mãe entendia que nos termos do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, as despesas escolares eram repartidas na proporção de metade e o estabelecimento de ensino seria o colégio privado em causa, sendo que a mudança de escola era uma questão a decidir por ambos.
Nem a requerente nem o requerido intentaram qualquer ação para resolução de questão de particular importância, nem outra de alteração das responsabilidades parentais.
O tribunal decidiu pela procedência parcial do incidente, e julgou verificado o incumprimento pelo pai de prestar alimentos aos filhos na vertente da comparticipação das despesas de saúde, material escolar e manuais escolares e despesas com o colégio apenas entre outubro e junho de 2020. Fixou a dívida em € 4.866,15 mais juros de mora.
A requerente recorreu da sentença.
Decisão da Relação de Lisboa
O TRL julgou procedente o recurso e revogou a sentença recorrida.
Deve decidir-se no caso que, na procedência do incidente de incumprimento suscitado pela mãe, verificado o incumprimento pelo requerido da sua obrigação de prestar alimentos aos filhos (comparticipação em metade das despesas de saúde e de educação) o montante da dívida a fixar, com referência a 31/3/2024, é de € 18.257,63 mais juros.
Para o TRL, o que está em causa no incidente de incumprimento não é o pedido de alteração de um regime em vigor, mas sim o reconhecimento da falta de cumprimento das obrigações emergentes do regime em vigor, com a determinação das diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do devedor em multa (se requerido).
Ou seja, o incidente de incumprimento não serve, de modo algum, para obter a alteração do regime que regula o exercício das responsabilidades parentais, designadamente na dimensão dos alimentos, a não ser que haja acordo dos progenitores nesse sentido, efetuado no âmbito processual, e apenas na medida em que possa ser homologado judicialmente, por respeitar o superior interesse dos menores credores desses alimentos.
Isso significa que toda a defesa apresentada pelo requerido e que se prende com a alteração das suas condições económicas, ocorrida após a homologação do acordo do exercício das responsabilidades parentais relativas aos dois menores - designadamente no que respeita à impossibilidade de suportar metade das despesas de educação e de saúde - se revela totalmente inócua para afirmar a não exigibilidade de metade dos valores concretamente despendidos a esse título e, consequentemente, o não reconhecimento do incumprimento dessa obrigação alimentar.
Entende o TRL que a vontade individual de cada um dos progenitores há-de ceder perante o superior interesse do seu filho, correspondente ao desenvolvimento da sua personalidade e das suas condições morais, sociais e psíquicas que lhe permitirão ser um adulto plenamente integrado e realizado em todos os aspetos da sua vida, mesmo que, para tanto, um dos progenitores haja de chegar ao limite das suas possibilidades económicas. Só assim se considerar cumprido o correspondente dever de prover à educação e manutenção do filho.
Nessa medida, no caso concreto, o TRL concluiu que a vontade unilateral do pai de mudar o estabelecimento de ensino frequentado pelos filhos, fundada nas suas dificuldades económicas, nunca poderia ter aptidão para conduzir a tal mudança; desde logo porque, a ser assim, seria o interesse individual do requerido que se sobrepunha ao superior interesse dos menores.
Verificada a ineficácia da vontade do requerido para desencadear essa mudança, e deixando de pagar a sua parte nas despesas de frequência do colégio, isso representa o incumprimento do regime que havia sido acordado e homologado judicialmente - o regime vigente, já que não tinha sido feita qualquer alteração válida.
Portanto, o TRL revogou o decidido e considerou a procedência total do incidente e do valor pedido pela mãe.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.07.2024
Lei n.º 141/2015 - DR n.º 175/2015, Série I de 2015-09-08 (Regime Geral do Processo Tutelar Cível), artigo 41.º