O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que um cirurgião plástico é responsável pelo pagamento de uma indemnização a uma paciente que tenha sofrido danos em resultado de uma vulvoplastia (cirurgia íntima feminina com o objectivo de corrigir alterações estéticas nos órgãos femininos) realizada sem o seu consentimento no decurso de uma operação estética.
O caso
Uma mulher consultou um cirurgião plástico para que este a ajudasse a subir as cicatrizes que tinha na zona inguinal, de forma a que estas deixassem de ser visíveis abaixo da linha do fato de banho.
O médico propôs-se efetuar a correção através de duas cirurgias. Na primeira seria realizada uma pequena lipoaspiração à parte interna das coxas para que, com o excesso de pele daí resultante, se pudesse efetuar a segunda cirurgia na qual seriam subidas as cicatrizes.
Depois de operada, a mulher foi informada pelo médico de que este tinha resolvido o seu problema numa única operação e aproveitado a cirurgia para injetar na vulva a gordura colhida da face interna das coxas por lipoaspiração, procedendo ao enchimento dos grandes lábios, algo que nunca fora discutido entre os dois e de cujos riscos inerentes a mulher nunca fora informada.
Após a operação a mulher começou a sentir fortes dores, apresentando-se o grande lábio do lado direito muito inchado e deformado, dores que foram aumentando consideravelmente nos dias seguintes e que a levaram a consultar novamente o médico.
Este, depois de a observar, afirmou que tudo estava a correr normalmente e medicou-a. Porém as dores e o inchaço nunca diminuíram, o que a levaram a consultar outro médico que, perante a infeção instalada por se terem formado abcessos, acabou por lhe drenar os dois grandes lábios.
Revoltada com o sucedido, face às dores intensas que sofrera e que se mantinham durante o período menstrual, bem como à deformação com que ficara na zona dos grandes lábios, a mulher participou disciplinarmente do médico à Ordem dos Médicos e agiu judicialmente contra ele exigindo o pagamento de uma indemnização.
O processo disciplinar foi arquivado mas, em tribunal, o médico, apesar de ter negado qualquer responsabilidade pelo sucedido, acabou condenado a indemnizar a paciente pagando-lhe 26.000 euros. Inconformado com essa decisão, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto e depois para o STJ.
Apreciação do Supremo Tribunal de Justiça
O STJ confirmou a condenação do médico ao considerar que este realizara a vulvoplastia sem o necessário consentimento da paciente.
Segundo o STJ, a obrigação contratual assumida pelo médico perante o paciente constitui uma obrigação de meios, na medida em que este não está vinculado a obter um determinado resultado mas apenas a agir com a diligência e perícia devidas para a obtenção do efeito desejado.
Porém, no caso das cirurgias estéticas, que se destinam a corrigir um determinado defeito físico ou a melhorar a aparência ou a imagem de uma pessoa, a dimensão do resultado assume um maior relevo do que nas cirurgias curativas ou assistenciais, típicas obrigações de meios. Trata-se de uma obrigação de quase resultado já que é a procura deste que conduz à sua realização. Além dessa especificidade de comportarem obrigações de quase resultado, as cirurgias estéticas exigem um dever de esclarecimento mais intenso e mais rigoroso aos médicos, pelo facto de serem intervenções que não são necessárias do ponto de vista da saúde.
O consentimento do paciente constitui um dos requisitos da licitude da atividade médica, tendo de ser prestado de forma livre e esclarecida para ser eficaz e legitimar a intervenção médica. Sem esse consentimento, o médico terá de responder perante o paciente, mesmo quando a sua intervenção seja medicamente indicada e dela não resultem quaisquer danos para a saúde deste.
Nesse sentido, a declaração escrita na qual a paciente autorize a realização de uma lipoaspiração e a subida das cicatrizes, bem como os médicos a fazerem tudo o que seja necessário, incluindo operações ou procedimentos diferentes desses, no caso de ocorrerem complicações no decurso dos mesmos, não comporta qualquer autorização para a realização de uma vulvoplastia, enquanto procedimento complementar à cirurgia estética acordada.
No caso das operações estéticas reconstrutivas, porque se repercutem na imagem da pessoa e na relação consigo mesma e com os outros, porque relacionadas com o corpo e com a identidade da pessoa, o consentimento do paciente nunca pode ser presumido.
O consentimento presumido só é admissível quando a intervenção médica seja absolutamente inadiável, destinando-se apenas a fazer face a situações em que no decurso de uma operação se verifica um perigo imprevisto para a vida ou para a saúde, que seja preciso resolver de imediato enquanto o paciente se encontra ainda em período de inconsciência e incapaz de prestar consentimento.
Pelo que tendo a vulvoplastia sido realizada por livre vontade do médico e não no decurso de qualquer complicação decorrente da intervenção cirúrgica acordada com a paciente, nem para solucionar qualquer problema urgente de saúde, na medida em que se trata de uma operação com fins meramente estéticos, nunca poderia tê-lo sido sem o consentimento expresso e informado da paciente.
Deve também ser excluída a possibilidade de consentimento hipotético da paciente, no sentido de que se tivesse sabido da oportunidade de fazer a vulvoplastia com o tecido adiposo que resultou da lipoaspiração não a teria recusado. Isto porque se trata de uma intervenção cirúrgica suscetível de causar riscos graves, como dores intensas e incapacidade para manter relações sexuais, andar e trabalhar, o que obriga a concluir que se ela soubesse dos riscos da mesma, sempre teria recusado o consentimento.
Não tendo a paciente prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do ato cirúrgico a que foi sujeita, recai sobre o médico toda a responsabilidade pelos danos daí resultantes.
Referências
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 2 de junho de 2015
Código Civil, artigos 70.º, 219.º, 236.º, 340.º, 342.º, 496.º, 562.º e seguintes, 798.º, 799.º e 1154.º.
Código Deontológico da Ordem dos Médicos, artigo 38.º