O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu ser usurário o testamento lavrado a favor de pessoa que, tendo durante cerca de dois anos cuidado do testador, se aproveitou da sua situação de inferioridade para ficar com todo o seu património, sem qualquer razão justificativa.
O caso
Depois de ter sofrido um AVC, uma viúva com 75 anos de idade, doente oncológica e a quem fora anteriormente amputada uma perna e realizada uma mastectomia, necessitou de ter quem a ajudasse em casa com a sua higiene, limpeza, medicação e alimentação.
Para o efeito foi contratada uma empresa cuja funcionária encarregue de prestar assistência à idosa acabou por a levar para sua casa. Nessa altura não permitiu, por diversas vezes, que o irmão e amigos da idosa a visitassem, tendo levado a que ela outorgasse dois testamentos e uma cessão gratuita de quinhão hereditário a seu favor.
Cerca de dois anos depois, a senhora faleceu, sem deixar descendentes, tendo o seu irmão recorrido a tribunal pedindo para que os testamentos e a cessão gratuita de quinhão hereditário fossem anulados
Fê-lo alegando que a curadora se aproveitara da situação de inferioridade e de dependência da sua irmã, bem como do estado de saúde desta e das suas limitações cognitivas, para ficar com os bens dela.
A ação foi julgada procedente, e os negócios em causa anulados, decisão essa que foi objeto de recurso para o TRP.
Apreciação do Tribunal da Relação do Porto
O TRP negou provimento ao recurso, confirmando a anulação dos testamentos e da cessão gratuita de quinhão hereditário, ao considerá-los usurários.
Entendeu o TRP que configura um negócio jurídico usurário a consciência e o aproveitamento pelo cuidador, que tenha prestado assistência durante cerca de dois anos, da situação de inferioridade de uma viúva, com 75 para 77 anos, doente e dependente dos cuidados de terceira pessoa para a satisfação das necessidades básicas da vida, com algumas limitações cognitivas, sem ascendentes vivos e sem descendentes, a quem o cuidador impediu as visitas de familiares e amigos e que neste quadro vem a falecer, depois de dispor de todo o seu património a favor desse cuidador, sem causa justificativa.
Segundo o TRP, o regime jurídico dos negócios usurários, que permite a sua anulação quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados, é aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias.
Visa esse regime proteger as pessoas em situações de fraqueza contra quem se pretende aproveitar dela e pressupõe um estado de inferioridade de um dos contraentes e a obtenção consciente de benefícios excessivos ou injustificados para o outro ou para terceiro.
Só existindo negócio usurário quando se verifiquem, cumulativamente, os respetivos requisitos:
- uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem;
- a exploração dessa situação;
- para obter para si ou para terceiro a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
A situação de inferioridade, como primeiro requisito, verifica-se quando a idade avançada da pessoa, a sua doença, as suas limitações físicas e a total dependência de uma terceira pessoa conduzam a uma situação de enfraquecimento da vontade e de debilidade, que a impeça de formar e manifestar livremente a sua vontade.
O segundo requisito, de exploração dessa situação, verifica-se quando, apesar de não ter sido por sua iniciativa que os negócios foram celebrados, estes tenham ocorrido depois do beneficiário ter passado a cuidar da pessoa em causa, de forma gratuita e sem que com ela tivesse qualquer laço de parentesco ou afinidade, sendo progressivamente mais vantajosos para si.
Por último, verifica-se a concessão de um benefício injustificado quando, independentemente do valor dos bens em causa, seja constituída como única beneficiária da herança uma pessoa cuja única ligação seja o facto de ter cuidado da autora da herança durante os seus dois últimos anos de vida.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 1579/14.5TBVNG.P1, de 8 de julho de 2015
Código Civil, artigo 282.º