Quem se sirva da credulidade e amizade de uma amiga, e a leve a assinar diversos contratos de crédito ao consumo, convencida de que se trata de um único crédito e que o assinava como mera fiadora, e a entregar-lhe os seus documentos e meios de acesso à conta bancária para, depois, transferir para uma conta sua as verbas obtidas com esses empréstimos, comete um crime de burla qualificada em concurso real com um crime de burla informática.
O caso
Aproveitando-se da confiança e amizade de longa data de uma colega de trabalho, uma mulher pediu-lhe para ser fiadora num empréstimo que necessitava de obter para custear uma pequena obra de instalação elétrica em sua casa, onde vivia com o marido doente, e para a qual não dispunha de dinheiro suficiente.
A colega aceitou, tendo-lhe entregue os seus documentos pessoais, a caderneta da conta e o código de acesso à mesma, depois de lhe ter sido dito que tal era necessário para a concretização do empréstimo.
Em vez de um, a mulher contratou a obtenção de três empréstimos, junto de empresa diferentes, que a colega assinou convencida de que se tratava de um único contrato e que o fazia apenas na qualidade de fiadora.
Depois de aprovados os empréstimos e de ter sido disponibilizado o dinheiro na conta bancária da colega, a mulher utilizou a caderneta e o código de acesso para o transferir para a sua conta pessoal, apropriando-se assim de 14.000 euros.
Como os empréstimos não foram pagos, as respetivas financeiras intentaram ações executivas contra a colega, que levaram à penhora do seu vencimento.
Levada a julgamento, a mulher foi condenada a dois anos e três meses de prisão suspensa, pela prática de um crime de burla qualificada. Inconformada com essa decisão, ela interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto (TRP).
Apreciação do Tribunal da Relação do Porto
O TRP confirmou a condenação, mas alterou a decisão recorrida ao decidir que a arguida cometera um crime de burla qualificada em concurso real com um crime de burla informática ao servir-se da credulidade e amizade da colega, para a levar a assinar diversos contratos de crédito ao consumo, convencida de que se tratava de um único crédito e que o assinava como mera fiadora, e a entregar-lhe os seus documentos e meios de acesso à conta bancária para, depois, transferir para uma conta sua as verbas obtidas com esses empréstimos.
Segundo a lei, comete um crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.
Assim, na burla tem de ser utilizado um meio astucioso e enganoso que induza o burlado em erro e que o leve a praticar atos dos quais resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios, sendo exigida sempre a verificação desse duplo nexo causal para que haja crime.
Nesse sentido, induz em erro a vítima, de uma forma astuciosa, quem, servindo-se da sua boa-fé, confiança e amizade, a leva a assinar vários empréstimos convencendo-a de se tratava de um único e no qual figuraria apenas como fiadora e nunca como principal pagadora, para depois se apoderar das quantias mutuadas, transferindo-as para a sua conta bancária.
Mesmo quando, para o efeito, não tenha tido que utilizar processos demasiado rebuscados ou engenhosos para defraudar o património da vítima, devido à confiança cega, compaixão e excessiva credulidade desta.
Burla essa que, sendo qualificada tendo em conta os montantes envolvidos, é cometida em concurso real com um crime de burla informática quando a arguida, além de ter induzido a amiga em erro para a obtenção dos empréstimos, tenha utilizado a caderneta e código de acesso à sua conta bancária, sem para tal ter sido autorizada, para transferir as verbas assim obtidas para a sua conta pessoal.
Isto porque, para que haja burla informática, não é exigido qualquer engano ou artifício por parte do agente mas apenas a introdução e utilização abusiva de dados no sistema informático.
Mesmo tendo a vítima cedido voluntariamente a caderneta bancária e o código de acesso à amiga, tal ocorreu porque estava convencida de que tais elementos eram imprescindíveis para que esta conseguisse obter o crédito bancário de que, alegadamente, carecia, e não para que os utilizasse para movimentar a sua conta bancária.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 482/10.2SJPRT.P1, de 3 de fevereiro de 2016
Código Penal, artigos 217.º, 218.º e 221.º