O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que não é admissível a obtenção de dados de tráfego e de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas, não identificadas, que tenham estado no local no momento em que foram praticados os factos que deram origem ao inquérito crime por roubo violento a uma residência.
O caso
Os proprietários de uma casa em Cascais viram a mesma ser assaltada por quatro indivíduos armados e encapuçados. Depois de apresentada queixa às autoridades, as diligências realizadas não permitiram identificar os autores do assalto, tendo sido apenas possível apurar que se tratariam de indivíduos do sexo masculino, que mediam entre 1,80 m e 1,90 m, e que o mais alto seria moreno, com olhos cor de mel, com uma tatuagem no braço esquerdo e uma peruca com rastas no cabelo.
O que levou o Ministério Público a requerer junto do juiz de instrução que fosse solicitado junto das diversas operadoras de telemóveis a disponibilização dos registos completos das comunicações efetuadas e recebidas no local e hora do assalto como única possibilidade de chegar à identificação dos autores do crime através de uma eventual localização celular dos telemóveis que os mesmos teriam na sua posse, durante a prática dos factos.
Mas a juiz de instrução indeferiu o pedido ao decidir que o mesmo não era admissível por não estarem devidamente concretizados os alvos pretendidos e a diligência atingir um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que podiam ser considerados suspeitos. Inconformado com essa decisão, o MP recorreu para o TRL.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL negou provimento ao recurso ao decidir que não é admissível a obtenção de dados de tráfego e de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas, não identificadas, que tenham estado no local no momento em que foram praticados os factos que deram origem ao inquérito crime por roubo violento a uma residência em Cascais.
Segundo a lei, a transmissão às autoridades de dados conservados de tráfego e de localização celular relativos a comunicações telefónicas está dependente de autorização do juiz de instrução, a qual só pode ser concedida quando estejam em causa crimes graves, essa prova seja indispensável para a descoberta da verdade ou muito difícil de obter de outra forma e os dados a transmitir sejam relativos ao suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário ou à vítima de crime, mediante o respetivo consentimento, efetivo ou presumido.
Além disso, a decisão judicial de transmitir os dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à proteção do segredo profissional.
Ora, segundo a noção processual de suspeito, este será toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar.
Partindo deste conceito, a jurisprudência tem entendido que para o preenchimento da noção de suspeito não é necessário que seja conhecida a identificação civil completa da pessoa em concreto, mas é fundamental que se trate de uma pessoa concreta, determinável, passível de individualização e não de um mero agente abstrato do crime.
Assim, não estando concretizados alvos determináveis e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de suspeitos, não pode a mesma ser deferida.
Posição diversa poderia ser considerada no caso de, embora se desconhecendo quais os suspeitos do crime, a diligência requerida não atingisse, presumivelmente, um grande e incerto número de cidadãos mas tão só os potenciais autores do crime e as suas vítimas, por abarcar uma região pouco habitada e frequentada.
Mas não é manifestamente esse o caso do centro do concelho de Cascais, e muito menos do centro da vila, onde seriam certamente recolhidos dados de inúmeras pessoas, inclusive do Presente da República, que nele reside, e que assim veriam violada a sua privacidade, sempre afetada mesmo quando não seja conhecido o conteúdo da comunicação.
Embora o crime de roubo gere grande intranquilidade na sociedade, a devassa da vida íntima e privada dos cidadãos perante as novas tecnologias da comunicação também o faz, pelo que, sem uma determinação de quem possam ser os visados pela diligência, não pode ser esta autorizada pelo juiz de instrução.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 48/16.3PBCSC-A.L1-9, de 22 de junho de 2016
Lei n.º 32/2008, de 17/07, artigos 1.º, 4.º e 9.º
Constituição da República Portuguesa, artigo 18.º n.º 2
Código de Processo Penal, artigo 1.º alínea e)