O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que não é nula a procuração outorgada por um dos cônjuges ao outro conferindo-lhe poderes para vender imóveis que constituem bens comuns do casal, com menção de que a procuração é passada no interesse do representante e, portanto, irrevogável, mas sem menção de que o representante pode celebrar negócio consigo mesmo.
O caso
Na posse de procuração irrevogável conferida pela sua mulher, o proprietário de duas frações autónomas que faziam parte do património comum do casal celebrou contrato-promessa pelo qual prometeu vendê-las a uma mulher, que, prometendo comprá-las, declarou ter pago a totalidade do preço acordado pelos imóveis.
O vendedor declarou que iria substabelecer os poderes de venda que lhe tinham sido conferidos pela mulher e outorgar procuração de venda, ambos a favor da promitente-compradora, ou de quem esta indicasse, para que pudesse celebrar a escritura. Mas depois de o fazer, a promitente-compradora faleceu, sem que se tivesse chegado a celebrar a escritura pública de compra e venda.
A mãe da compradora, sua única herdeira, notificou os vendedores da data, hora e local da escritura, advertindo-os que se esta não se realizasse por facto imputável a eles, seria considerada a existência de incumprimento definitivo do contrato.
No dia e hora agendados, a escritura não se realizou, tendo os vendedores invocado a falsidade do contrato-promessa afirmando que o mesmo tinha sido assinado sem intenção de ser concretizada a venda, mas apenas para assegurar que a compradora pudesse, durante a sua vida, habitar a casa, sem que esse uso fosse atacado por terceiros.
A herdeira recorreu, então, a tribunal pedindo a execução específica do contrato e a concretização da compra e venda. Findo o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, substituindo a vontade dos vendedores no contrato de compra e venda prometido, declarou transmitido para a autora, na qualidade de herdeira da promitente-compradora, a propriedade plena dos imóveis. Inconformados, os réus recorreram para o TRL, invocando a nulidade da procuração utilizada para a celebração do contrato-promessa e defendendo que a escritura não se realizara porque a compradora não pagara os impostos devidos.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL julgou improcedente o recurso ao decidir que não é nula, por violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens, a procuração outorgada por um dos cônjuges ao outro conferindo-lhe poderes para vender dois imóveis que constituem bens comuns do casal, podendo praticar os atos necessários para o efeito, com menção de que a procuração é passada no interesse do representante e portanto irrevogável, mas sem menção de que o representante pode celebrar negócio consigo mesmo.
A lei consagra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens, proibindo a alteração destes depois do casamento, considerando abrangidos pela proibição os contratos de compra e venda entre os cônjuges, protegendo assim quer a relação entre os cônjuges e o perigo de um deles e apoderar dos bens comuns ou próprios do outro, quer as expectativas de terceiros nas relações patrimoniais mantidas com o casal.
Não obstante, não constando da procuração que o procurador estava autorizado a celebrar o negócio consigo mesmo, a mesma não permite a venda de um bem comum do casal ao cônjuge, apenas o autorizando a vender esse bem comum a terceiros.
O facto da procuração ser passada no interesse do representante marido e, como tal, irrevogável, também não significa que a venda não fosse também no interesse da representada, sendo certo que a procuração não deixa de ser revogável se houver justa causa, pelo que não há uma decisão definitiva e sem possibilidade de retorno por parte do cônjuge representado e, consequentemente, nenhuma violação da lei.
A procuração é, portanto, válida, pelo que, constando no certificado emitido pelo cartório notarial que, no dia da marcação da escritura do contrato prometido, fixado por iniciativa da compradora, foram juntos os documentos de liquidação dos impostos, sem comprovativo de pagamento, e que a escritura de compra e venda não se realizou por os vendedores terem alegado a falsidade do contrato-promessa, há que concluir que a compradora, interessada na celebração do contrato, só não pagou os referidos impostos em virtude da recusa dos vendedores em o outorgar, havendo assim incumprimento definitivo por parte destes.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 681/14.8 TBOER.L1-6, de 20 de setembro de 2018
Código Civil, artigos 261.º, 265.º, 1175.º e 1714.º