O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu que o dono de um cão é responsável pelos danos que o animal provoque ao morder uma criança quando o tenha deixado no porta-bagagens aberto do seu carro, sem qualquer dispositivo de contenção que o impedisse de a atingir e ao permitir que ela se aproximasse do cão e lhe fizesse carícias, ficando sujeita ao risco de ser mordida.
O caso
Em maio de 2012, uma criança de 4 anos de idade foi mordida no lábio superior por um cão que estava junto com o dono no interior do porta-bagagens do carro, sem trela nem açaime, no momento em que lhe tentou fazer uma festa. O dono do cão era amigo dos pais da criança, que, por essa razão, permitiram que ela fizesse festas ao cão, pedindo autorização ao dono que não se opôs, tendo aquele acabado por ser condenado, em processo especial sumaríssimo, no pagamento de multa pela prática de um crime ofensa à integridade física negligente.
Posteriormente, a menor, representada pelos seus pais, agiu judicialmente contra o dono do cão exigindo do mesmo o pagamento de uma indemnização pelos danos que sofrera, tendo o tribunal acabado por o condenar no pagamento de 22.000 euros, a título de danos não patrimoniais. Inconformado com essa decisão, o dono do cão recorreu para o TRL, alegando, entre outros pontos, que o evento ocorrera num lugar privado, o interior do seu veículo, e que o facto de não ter respondido ao pedido de autorização para fazer festas no cão não equivalia a consentimento, não podendo ser valorado o seu silêncio para o responsabilizar.
Apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRL julgou improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida, ao decidir que o dono de um cão é responsável pelos danos que o animal provoque ao morder uma criança quando o tenha deixado no porta-bagagens aberto do seu carro, sem qualquer dispositivo de contenção que o impedisse de a atingir e ao permitir que ela se aproximasse do cão e lhe fizesse carícias, ficando sujeita ao risco de ser mordida.
A lei estabelece uma presunção de culpa, por violação do dever de vigilância sobre coisas ou animais, ao estabelecer que quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais responde pelos danos que os mesmos causarem, salvo se provar que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Culpa que é apreciada, na falta de qualquer critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face às circunstâncias de cada caso, que podia e devia ter agido de outro modo.
Sendo que incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou integridade física de outras pessoas. Por seu turno, é proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor e sem açaimo funcional, exceto quando conduzidos à trela, em provas ou treino ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os atos venatórios.
Para esse efeito, não deixa de estar num espaço público um cão, ainda que sentado na bagageira de um veículo privado, quando esse espaço não estava fechado, mas antes aberto sobre a via pública, possibilitando que se lançasse sobre quem por ali passasse, sem que o dono tenha tomado as devidas precauções que a situação concreta exigiria.
O que releva não é a circunstância de o cão estar no porta-bagagens do carro do dono, mas sim, o facto de o mesmo estar em condições que permitiram que se lançasse sobre quem passasse por perto. Como tal, o dono não estava isento do seu dever de vigiar o animal, tendo atuado com negligência e criado uma situação de perigo ao permitir que o mesmo estivesse ao seu lado, sobre a via pública, sem trela e sem açaime, o que tornou possível que tivesse mordido a criança, causando-lhe ferimentos graves.
Para obstar à sua responsabilização, importaria que o dono do cão conseguisse ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, face à detenção do animal, demonstrando, por exemplo, que o cão, em vez de solto, estava fechado no interior do veículo e que tinha sido a menor quem, entrando pelo veículo a dentro, ou colocando o seu braço sobre alguma fresta aberta do mesmo, proporcionara uma intempestiva reação do cão, levando-o a mordê-la.
Na fixação da indemnização devida pelos danos não patrimoniais sofridos pela criança deve o tribunal recorrer à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Ponderando a tenra idade da vítima, então com 4 anos, a gravidade dos ferimentos e as dores tidas, bem como a cicatriz permanente e a sequela física com que ficou, que altera a sensibilidade do seu lábio, não podendo ser corrigida com os conhecimentos médicos atuais, considerou o TRL adequado o montante de 22.000 euros fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Referências
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 383/14.5T8AMD.L1-2, de 24 de outubro de 2019
Código Civil, artigos 487.º e 493.º
Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17/10, artigos 6.º e 7.º